História da Psicologia no Brasil, conforme Regina Helena de Freitas Campos: mudanças entre as edições

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== Resumo ==
Os estudos sobre a história da psicologia brasileira geralmente se concentram na recepção e circulação de teorias e técnicas psicológicas elaboradas na Europa e na América do Norte, e nas suas aplicações em pesquisas e práticas psicológicas no país. Essa abordagem deve ser complementada com o estudo da transformação e produção do conhecimento psicológico proveniente da cultura brasileira, incluindo de suas camadas populares, e sua interação com as ideias importadas de outros países. Existem ao menos quatro raízes que estão presentes na formação da cultura brasileira: as ideias dos indígenas sobre a natureza e desenvolvimento humano; as contribuições da cultura africana para a compreensão do mundo psicológico, trazidas pelos africanos vendidos como escravos e transferidos ao Brasil entre os séculos XVI e XIX; as perspectivas europeias recebidas através do ensino da psicologia filosófica, introduzidas em instituições educacionais católicas no período colonial; e a psicologia científica, introduzida nas  faculdades públicas de medicina e em instituições de formação de professores a partir do século XIX. A profissão de psicólogo, nascida do encontro entre as profissões de médico e de educador, foi regulamentada em 1962. As tarefas do psicólogo foram definidas na época: avaliação psicológica através de testes mentais, diagnóstico de problemas mentais e comportamentais, orientação psicológica e psicoterapia. A profissão foi principalmente concebida para as elites intelectuais e sociais. A partir da década de 1990, com o crescente número de graduados, a participação dos psicólogos nas instituições de saúde pública, educação e de serviços sociais expandiu rapidamente. Consequentemente, os psicólogos começaram a desenvolver práticas e técnicas de intervenção mais adequadas às exigências das populações de baixa renda, imersas nas crenças e práticas da cultura popular brasileira. Esse diálogo colaborou para o surgimento de inovações na psicologia, tornando-a mais sensível às visões de mundo das culturas que compõem o panorama cultural brasileiro, e produzindo contribuições originais com um profundo impacto na psicologia contemporânea. Atualmente, os psicólogos profissionais brasileiros constituem uma das maiores comunidades de psicólogos no mundo, com uma forte presença nas redes de saúde mental, educação e serviços sociais. O trabalho dos psicólogos, fortemente influenciado por perspectivas teóricas que enfatizam a relação entre as dinâmicas socioculturais e a elaboração psicológica , é considerado relevante para a efetivação dos ideais dos direitos humanos neste momento.


=== Palavras-chave: ===
Palavras-chave: história da psicologia no Brasil, cultura brasileira, higiene mental, educação, profissão de psicólogo, psicologia nas políticas públicas.
== Introdução — História da Psicologia e o Contexto Cultural ==
O conhecimento sobre a psique humana tem longa data (Robinson, 2013). As sociedades humanas são compostas por pessoas dotadas de reflexividade (Morawski, 2020), logo, refletem sobre si mesmas, suas vidas, pensamentos, sentimentos e ações, elaborando suas próprias concepções sobre a natureza e práticas humanas. A psicologia enquanto campo do conhecimento pode ser vista como “um conjunto de teorias e práticas enraizadas socialmente que tanto reificam quanto refletem os contextos de onde se originam e para onde retornam” (Pickren & Rutherford, 2010, p. xvii). Essas ideias e práticas ligadas à dimensão psicológica da existência humana podem ser, de maneira geral, incluídas dentro do campo de estudos da história das ideias psicológicas (Massimi, 2020). Elas também podem ser consideradas como parte da história social, quando vistas de uma perspectiva historiográfica externalista (Lakatos, 1989), focando em suas relações com o contexto social e cultural nas quais são produzidas ou apropriadas, em um processo denominado “indigenização”, quando são combinadas com ideias e demandas locais (Danziger, 2006; Kelley, 2002). Além disso, o conhecimento produzido por seres humanos sobre si mesmos pode influenciar a maneira como vivem e interpretam suas próprias ações em sociedade, um processo descrito por Hacking (1999) como “efeito looping”. Nesse sentido, a construção do conhecimento psicológico, compreendido como o conjunto de visões e interpretações dos pensamentos, sentimentos e ações humanas, está profundamente enraizado no contexto social e cultural onde é inventado, difundido e apropriado através da interação humana. Por esse motivo, o conhecimento psicológico está fortemente ligado à sua realidade geográfica e histórica.
Neste artigo, a história da psicologia no Brasil é abordada. Aqui, entende-se que a palavra “psicologia” se refere à história de um campo de conhecimentos culturais, filosóficos, científicos e profissionais, e de práticas sobre pensamentos, sentimentos e ações humanas, desenvolvidas no país desde o início da colonização portuguesa em 1500.
Os historiadores da psicologia geralmente descrevem o campo do pensamento psicológico em termos de ideias e explicações sobre a natureza humana produzidas por culturas e sociedades humanas em diferentes períodos históricos, a partir de um ponto de vista cultural ou filosófico, ou como um campo de investigação científica que faz parte da ciência moderna. Ideias psicológicas podem ser relacionadas à evolução do pensamento filosófico, destacando reflexões sobre a natureza humana e as estruturas psicológicas exploradas por antigos pensadores, na tentativa de estabelecer continuidade na história do pensamento (por exemplo, Allport, 1968; Boring, 1950; entre outros). Outros historiadores enxergam uma ruptura nessa história com o nascimento da ciência moderna, do século XVI em diante, principalmente a partir do século XIX, quando os primeiros laboratórios de psicologia foram inaugurados (Danziger, 2013; Hilgard, 1987; Reuchlin, 1999, entre outros). De acordo com Brožek (1999, p. 179), “o termo ‘psychologia’ apareceu no século XVI, na Europa, como um termo erudito equivalente ao título dos tratados tradicionalmente nomeados em latim como “De anima” (Da Alma)”, na tradição aristotélica. Vidal (2011) data o século XVIII como o período de institucionalização do campo da psicologia na modernidade.
A história da psicologia no Brasil também pode ser dividida em períodos, cada um deles dominado por perspectivas culturais ou filosóficas da compreensão humana, ou por abordagens científicas, empíricas, das mentes, sentimentos e comportamentos humanos, começando com a descoberta feita pelos navegadores portugueses, em 1500, do território da América do Sul onde o país se localiza. Esses períodos são: (1) o período colonial, entre 1500 e 1822, quando a região foi colonizada pelo império português e, brevemente, pelo império espanhol, que dominou Portugal entre 1580 e 1640 enquanto colonizava regiões da América Central e da América do Sul. Durante esse período, a população do país foi formada, miscigenando indígenas, colonizadores portugueses, missionários e comerciantes estrangeiros que vieram de outras regiões do globo, e escravos trazidos da África. Naquela época, a composição da população teve um impacto considerável no desenvolvimento das ideias psicológicas. Pode-se diferenciar as concepções dos indígenas sobre a natureza humana, os ensinamentos de padres católicos e missionários sobre as ideias da psique, derivadas da tradição aristotélico-tomista da filosofia, e as influências das mitologias e religiões populares da África. Como nenhuma universidade foi criada no país durante esse período, as elites brancas eram majoritariamente educadas em Portugal, na Universidade de Coimbra, ou em colégios jesuítas fundados nos maiores centros urbanos (Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo), onde circulavam as ideias da clássica tradição filosófica da Europa. (2) O período imperial, que começou com a declaração de independência de Portugal, em 1822, e terminou com a proclamação da república brasileira em 1889. Durante esse período, abordagens filosóficas e científicas da psique humana, que originaram na Europa, circularam nas recém criadas faculdades de medicina e direito, e contribuíram para a formação do higienismo e para a orientação moral da população por médicos em contato com as universidades europeias, um movimento que promoveu maior circulação da ciência moderna no interior do país. (3) O período republicano, de 1889 em diante, quando a circulação e o desenvolvimento da psicologia científica começaram nas recém criadas escolas de formação de professores, universidades e instituições de saúde mental, promovendo produções originais no campo da psicologia científica e a expansão dos serviços psicológicos. (4) De 1962 até o presente, quando a profissão de psicólogo foi regulamentada, e quando a formação de psicólogos a nível universitário foi expandida e contribuiu para a composição de uma das maiores comunidades de psicólogos no mundo, com uma forte conexão e diálogo com a cultura brasileira (Antunes, 1999; Massimi, 1990). Durante esse período, pode-se observar também uma contínua institucionalização dos programas de pesquisa e pós-graduação na área, com ênfase na relação entre psicologia e processos socioculturais.
Neste artigo, o termo “psicologia” será compreendido com diferentes significados, a depender do período histórico analisado. Reflexões sobre a psique humana e práticas sociais referentes às emoções e à esfera moral, durante o período colonial, serão compreendidas como parte da história das ideias psicológicas. Do século XIX em diante, com o estabelecimento dentro do país das instituições de ensino superior nas áreas da medicina e do direito, das escolas de formação de professores e o início de um sistema de saúde mental gerido por médicos, a palavra “psicologia” referenciará as produções intelectuais relativas à ciência moderna. Começando pela segunda metade do século XX, com a regulamentação legal da profissão de psicólogo e o aumento do número de atuantes no campo, na sua maioria mulheres, a palavra referenciará tanto as produções científicas quanto a aplicação do conhecimento psicológico nas instituições de educação, trabalho e saúde mental, assim como na prática privada. Durante esse período posterior, uma característica já observada nos períodos anteriores e reconhecida como uma contribuição original da psicologia produzida na América Latina, especialmente no Brasil (Campos, 2006; Jodelet, 2015) — a ênfase na dimensão sociocultural da experiência humana dentro do campo da psicologia, com uma notória presença da psicologia social na educação dos psicólogos no país —, será explorada e documentada no processo de profissionalização dos psicólogos brasileiros.
Este artigo se baseia em uma leitura metateórica da literatura mais recente sobre a história da psicologia no Brasil, desde o estabelecimento do grupo de pesquisa sobre história da psicologia na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Campos, Jacó-Vilela, & Massimi, 2010). Diversos trabalhos investigaram fontes originais encontradas em arquivos históricos brasileiros (Antunes, 1999; Assis & Peres, 2016; Bomfim, 2003; Facchinetti & Jacó-Vilela, 2019; Massimi, 1990; Massimi & Guedes, 2004; Rocha, 2004; entre outros). Outros estudos foram desenvolvidos, alguns com auxílio do Conselho Federal de Psicologia, fundado em 1971, documentando a história e avanços recentes na profissão de psicólogo no país (Bastos & Gondim, 2010; Bock, 1999; Campos, 2001; Conselho Federal de Psicologia, 1988, 1992, 1995; Yamamoto & Costa, 2010). Vários desses estudos documentam a interação entre a diversidade sociocultural do Brasil e o desenvolvimento da psicologia no país, seja como um campo de pensamentos filosóficos e culturais, de investigação científica ou de práticas profissionais.
== Ideias Psicológicas no Período Colonial (1500-1908) — Encontros e Contradições entre Culturas ==
A cultura brasileira, que começou a ser formar em 1500 com a descoberta e colonização do imenso território da América do Sul pelo reino de Portugal, desenvolveu-se progressivamente a partir da miscigenação de diferentes povos: os indígenas, habitantes originários do território; os africanos, levados ao país para trabalharem como escravos nas grandes plantações e no meio urbano entre os séculos XVI e XIX; os próprios portugueses, que criaram organizações econômicas, políticas e culturais durante o longo período colonial entre o século XVI e o início do XIX; e também viajantes, comerciantes e imigrantes de diferentes partes do mundo que se estabeleceram no país ao longo de sua história (Azevedo, 1996; Ribeiro, 2015).
A contribuição desses grupos, das mais variadas origens, para a construção dos filamentos socioculturais que constituem a principal característica na formação do povo brasileiro, resultou em encontros entre diferentes visões de mundo e formas de vida social, acompanhados tanto pela empatia quanto pelo conflito. Para explicitar isso, as características psicológicas e psicossociais dos indígenas, europeus e africanos, que formaram essa cultura brasileira majoritariamente sincrética, serão brevemente apresentadas, tendo todas deixado profundas marcas ao longo do tempo. Uma destas, ainda presente na sociedade brasileira contemporânea, é a extrema desigualdade social e cultural estabelecida no país, com as elites tradicionais, detentoras do poder econômico e político, de um lado, e os outros grupos étnicos vivendo predominantemente na pobreza, do outro (Skidmore, 2004; Souza, 2018). A participação destes na distribuição de riquezas sempre foi limitada, apesar das contribuições bastante sofisticadas que incorporaram à diversificada composição social e cultural do Brasil.
=== Cultura Indígena ===
Quando os colonizadores portugueses desembarcaram pela primeira vez na parte leste da América do Sul, eles encontraram os habitantes originários, os aborígenes, os quais chamaram de “os povos indígenas”. Aproximadamente 1.000.000 de indígenas viviam espalhados ao longo do território em comunidades autônomas, ramificadas a partir de um tronco principal chamado Tupi-Guarani, o qual havia habitado a região por inúmeras gerações (Ribeiro, 2015). Esses povos tradicionais foram divididos em aldeias independentes uma das outras, que viviam sob um regime descrito como “comunismo primitivo” (Saviani, 2010), em comunidades que compartilhavam seus meios de subsistência. Eventualmente, as aldeias iriam entrar em conflito pela exploração do melhor pedaço de terra ou por outros motivos. A história dessas aldeias e de suas culturas foi transmitida oralmente, no interior de um sistema social baseado em laços familiares e comunitários.
As informações sobre os estilos de vida, representações do mundo, crenças e línguas dos povos indígenas na época da descoberta e durante o período colonial, estão apenas disponíveis em relatos de viajantes, colonizadores e missionários que estiveram no território que chamamos de Brasil hoje em dia. Esses relatos fornecem evidências dos diferentes pontos de vista dos visitantes em relação aos aspectos psicológicos e psicossociais da cultura aborígene.
Existem relatos que descrevem os povos indígenas vivendo em uma relação quase paradisíaca com a natureza, suas famílias, crianças e com a comunidade, consonante ao mito do ''bon sauvage'' de Rousseau, o qual alguns autores consideram ter sido inspirado por esses povos ancestrais encontrados na América (Dent, 1996). Nesses relatos, os habitantes da terra são retratados como pacíficos, e amorosos para com suas crianças (Massimi, 1990).
Outros relatos, como aqueles produzidos por Manoel da Nóbrega, que também foi um jesuíta e o primeiro líder provincial da Companhia de Jesus no Brasil, escritos entre 1549 (data do começo das missões jesuíticas no país) e 1561, fornecem uma visão mais pessimista da relação com os povos indígenas. Em seus relatos sobre o contato com os indígenas, Nóbrega relata tanto experiências positivas (a cordialidade dos indígenas ao receberem os missionários) quanto negativas, quando se depara com a resistência ao seu projeto de evangelização causado pelas crenças e costumes aborígenes (Massimi, 1990; Nóbrega, 2006).
O antropólogo Claude Lévi-Strauss (2007), ao descrever a estrutura de uma aldeia indígena no Brasil da década de 1930, percebeu o seguinte: o ser humano, para os nativos, não era considerado um indivíduo autônomo, mas uma pessoa, que faz parte de um universo sociológico existente desde tempos imemoriais, dentro do qual os papéis dele ou dela teriam sido desde sempre prescritos. Essa atribuição prévia de funções estaria inscrita na própria estrutura da aldeia, onde a localização das moradias e as regras para habitá-las determinariam os papéis sociais e as visões de mundo dos habitantes. Essa concepção, genericamente denominada “perspectivismo” na antropologia (Viveiros de Castro, 2002), enxerga o mundo como habitado por diferentes espécies de sujeitos (humanos e não humanos), os quais o apreendem a partir de diferentes pontos de vista. Nesse mosaico de perspectivas, tanto humanos quanto não humanos podem enxergar-se como pessoas, dotadas de espírito, e por vezes com intencionalidade. O universo seria então povoado com intencionalidades humanas e não humanas dotadas com suas próprias perspectivas. Essa cosmologia parece expressar uma certa fragilidade do humano diante das forças da natureza.
=== Cultura Europeia ===
A colonização do território brasileiro pelos portugueses começou em 1500, com sua descoberta feita por uma frota portuguesa que descia a costa africana a caminho das então chamadas Índias Orientais. Segundo Saviani (2010), tal processo foi realizado em três dimensões: tomando a posse da terra e explorando-a, o que implicava a subjugação dos habitantes locais (os moradores originais); sua educação na forma de aculturação, isto é, a imposição ao colonizado das práticas, técnicas, símbolos e valores dos colonizadores; e a catequização, compreendida como a busca de conversão do colonizado à religião do colonizador e sua disseminação. Nesse sentido, e como o estado português estava associado à religião católica, os primeiros missionários ligados à Igreja Católica Romana desempenharam um importante papel na primeira formatação das dimensões psicológica e psicossocial do ser humano no contexto colonial.
Os jesuítas, orientados diretamente por Inácio de Loyola e pela Companhia de Jesus, fundada por ele com o objetivo de levar a religião católica aos novos impérios coloniais sendo formados no Novo Mundo e na Ásia, inauguraram várias escolas nas primeiras cidades brasileiras, onde implantaram o método educacional do ''Ratio Studiorum'' e o ensino da psicologia filosófica (Saviani, 2010).
A psicologia ensinada no ciclo de estudos superiores das escolas jesuítas concentrava-se no estudo dos processos psicológicos descritos na matriz filosófica de Aristóteles e São Tomás de Aquino, e na leitura de tratados escritos em Coimbra, Portugal. Estes foram utilizados no ensino de filosofia da Universidade de Coimbra, e chegaram ao Brasil na bagagem dos missionários a partir do século XVI. Eles buscavam reconciliar a filosofia clássica com problemas do cotidiano, para que os padres pudessem transmitir conhecimento e valores em suas missões de evangelização (Massimi, 2020).
Essa psicologia ensinada nas escolas jesuíticas era utilizada por padres nas missas realizadas em inúmeras paróquias espalhadas por todo território brasileiro. Assim, enquanto as escolas promoviam uma formação de elite para os noviços, filhos de grandes proprietários de terras e de funcionários públicos, que moravam nas  cidades maiores  espalhadas ao longo da costa brasileira, a educação básica era dada nas residências das classes mais ricas e nas paróquias. Nessas paróquias, o sermão era proferido nas missas de domingo e em outras festividades; muitos dos famosos sermões foram publicados posteriormente. Essas falas dos religiosos tinham uma função educativa, sendo seus objetivos evangelizar a população e transmitir as histórias sagradas com seu significado moral. Nesse processo, eles ocuparam um lugar importante na transmissão da cultura cristã ocidental à população local, tanto urbana quanto rural (esta última sendo a maioria) (Massimi, 2020).
=== Cultura Africana ===
Outra fonte de conhecimento psicológico e de sincretismo cultural pode ser encontrada nas raízes africanas, as quais vieram a compor parte da cultura brasileira através da chegada de trabalhadores escravos, que contribuíram para a geração de riquezas na agricultura, criação de gado e mineração, constituindo o panorama econômico do período colonial a partir da metade do século XVI. Os africanos eram vendidos como escravos para trabalharem nas grandes propriedades rurais e, no ambiente urbano, nos lares das famílias mais prósperas. Por meio desse tráfico, o Brasil recebeu aproximadamente 5 milhões de africanos, representando 40% dos 12.5 milhões que embarcaram à América ao longo de três séculos e meio. Por esse motivo, hoje o país apresenta a segunda maior população negra do planeta, atrás apenas da Nigéria. Também foi, entre os países do Novo Mundo, o que mais demorou para abolir o tráfico de escravos (interrompido em 1850) e o último a proibir a própria escravidão, através da Lei Áurea de 1888, que proibiu o trabalho escravo em território brasileiro de maneira definitiva (Gomes, 2019).
O antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), que realizou estudos aprofundados sobre a composição da sociedade brasileira durante o período colonial, afirma que, a partir de 1532, tal composição era predominantemente formada por famílias rurais ou semi rurais, dependentes da agricultura e da escravidão, junto da influência intelectual da Companhia de Jesus. A família teria sido o fator colonizador por excelência, tanto como matriz econômica responsável pelas produtivas terras agrícolas — as ''plantations'' — bem como pela organização política, governada com mão de ferro pela aristocracia rural, sendo portanto uma fonte de normas culturais. Foi justamente a necessidade de trabalhadores nas grandes plantações que promoveu o tráfico de africanos escravizados, trazidos através do Oceano Atlântico por três séculos. Os africanos trouxeram consigo suas crenças e tradições culturais, e gradualmente  fizeram suas contribuições para a formação da cultura brasileira. Eles pertenciam a diversos povos africanos, especialmente aos grupos Bantu e Sudanês (Freyre, 1958).
O sistema escravocrata apresenta influências positivas e negativas na composição social brasileira. Pelo lado negativo, as características psicológicas e psicossociais que a escravidão promove não podem ser negadas: a disparidade social e política criada entre seres humanos (Schwarcz, 1993). A primeira tendência dos colonizadores havia sido, obviamente, tentar escravizar os indígenas, mas essa tendência se deparou com a implacável resistência dos catequistas, o que levou os donos de terra e comerciantes a buscarem a alternativa do tráfico negreiro, com todos os problemas e insuficiências que decorreram desse processo. Entre eles, houve principalmente a separação social entre pessoas livres e escravizados, e os hábitos nem um pouco humanitários que a situação provocou entre aqueles que estavam do lado privilegiado da relação senhor-escravo. Esse desequilíbrio de poder causado pela escravatura é o que teria gerado o preconceito de cor na cultura brasileira (uma maneira tendenciosa e antiética de justificar a escravidão dos africanos). Também foi responsável pela presença daquilo que o antropólogo Gilberto Freyre (1958) chamou de relações sadomasoquistas, junto das outras formas de autoritarismo exacerbado e desumano entre brancos e negros, numa dialética destrutiva.
Por outro lado, a presença dos africanos trouxe influências culturais e práticas com um forte impacto na mente popular, e na organização espontânea de um sistema comunitário de ajuda e aconselhamento em relação a questões psicológicas e psicossociais.  
Religiões de origem africana foram a fonte, por exemplo, do dito candomblé, na Bahia, ou da macumba, no Rio de Janeiro, religiões sincréticas com raízes no período colonial que misturam influências africanas, ameríndias, católicas e espíritas em sistemas religiosos de crenças e práticas panteístas, com muitos seguidores nas classes populares do Brasil (Bastide, 2001).
A presença de religiões e cultos de origem africana, portanto, como a macumba e o candomblé, tem marcado a sociedade brasileira desde o período colonial. Essa presença contribuiu para a disseminação de conhecimentos psicológicos e de práticas socioculturais entre as populações mais pobres, resultantes da mistura de elementos das culturas africana, ameríndia e cristã ocidental, com um forte impacto na cultura tradicional brasileira. A partir dessas misturas emergem novas formas de conceber os fenômenos psicológicos e psicossociais, e também a organização de uma extensa rede voltada para a reflexão sobre questões ligadas ao desenvolvimento humano, à regulação da coexistência entre as pessoas e grupos sociais e à vida familiar. Essas questões persistiram na sociedade brasileira, e seriam abordadas pelo conhecimento científico e psicológico que circulou no país a partir do final do século XVIII, sobretudo nas áreas médica e educacional.
== Século XIX — O Período Imperial e a Inserção da Cultura Científica no Brasil ==
Para entender como a ciência moderna chegou ao Brasil, é necessário compreender as transformações que ocorreram no sistema educacional português e brasileiro ao final do século XVIII. Naquela época, uma profunda reforma educacional foi iniciada em Portugal, na tentativa de superar os ensinamentos ministrados pelos jesuítas e outras congregações, e promover “o desenvolvimento da cultura geral, o incremento das indústrias, o progresso das artes, o progresso das letras, o progresso científico, a vitalidade do comércio interno, a riqueza do comércio externo, a paz política, a elevação do nível de riqueza e bem-estar” (Pombal, citado por Saviani, 2010, p. 81). Essencialmente, o projeto da Coroa Portuguesa (que incluía o Brasil, sua maior e mais importante colônia) era claramente promover a modernização da sociedade, por meio de reformas educacionais que tornariam o ensino mais prático e compatível com a ciência moderna. A reforma social também incluiu a extinção dos privilégios da nobreza, a expulsão dos jesuítas do território português e a união da igreja ao estado (tornando-a independente de Roma). As escolas jesuítas, tanto na metrópole como nas colônias, foram fechadas, substituindo seu ensino ministrado às elites por um sistema de “aulas régias” mantido pela monarquia. Nesse sistema, o qual levou alguns anos para ser estabelecido em todo o império, os professores pagos pela Coroa Portuguesa deveriam ensinar a leitura, escrita, aritmética, noções do latim, grego, retórica, e filosofia em escolas chamadas “inferiores” ou em suas casas. Ao mesmo tempo, uma ampla reforma no ensino universitário foi levada a cabo, aplicada na Universidade de Coimbra (a mais importante do Império Português, fundada em 1290) e em outras instituições de ensino superior existentes em Portugal.
A criação dessas primeiras escolas profissionais no Brasil foi uma das consequências da transferência da capital do Império Português ao Rio de Janeiro em 1808, e a instituição, em 1816, do Reino Unido, o qual congregou os territórios de Portugal, Brasil, e das outras colônias portuguesas na África e Ásia. A transferência da corte, resultante da invasão de Napoleão à Península Ibérica, impulsionou a criação, em 1808, da Escola de Cirurgia da Bahia, e da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Ambas foram fundadas junto aos hospitais militares reais nessas cidades, os maiores centros urbanos brasileiros da época.
Em 1822, o país tornou-se politicamente independente com o imperador Pedro I (1798-1834), filho do rei de Portugal, D. João VI (1767-1826), que havia retornado à metrópole alguns anos antes, assumindo o poder. A independência promoveu a reorganização política, social e cultural do país, numa perspectiva mais pragmática. A nova elite dominante, liderada por intelectuais e profissionais formados na Europa (Coimbra, França, Bélgica), e inspirada pelas teorias mecanicistas e sensualistas, assumiu o controle do projeto de modernização do país. Nesse processo, escolas de nível superior, academias, sociedades científicas e bibliotecas foram criadas. Em 1832, as Faculdades de Medicina e de Direito foram efetivamente organizadas. As teses defendidas nessas novas faculdades de medicina constituem uma importante fonte para o desenvolvimento das primeiras abordagens científicas da psicologia no país. Estudos já realizados sobre esse conjunto de trabalhos e sobre as práticas médicas do período fornecem evidências de que a formação em psiquiatria, no decorrer do século XIX, foi construída principalmente sob a influência da medicina francesa e, em menor medida, sob as escolas alemãs e inglesas. Os profissionais da medicina, no geral um pequeno número quando comparados ao tamanho da população, eram generalistas, dando prioridade à chamada medicina familiar. Nessa posição, tratavam os membros do grupo familiar como clínicos, cirurgiões ou parteiros, e também exerciam a função de conselheiros, sendo consultados sobre dificuldades domésticas, problemas de saúde física, bem como questões de saúde mental. Assim, eles desempenharam um importante papel, não apenas como profissionais da saúde, mas também como veículos de transmissão da cultura científica e na orientação da população acerca dos hábitos de higiene, física ou mental. Algumas das teses, defendidas tanto na Faculdade de Medicina da Bahia quanto no Rio de Janeiro, lidam com os aspectos psicológicos e psicossociais da saúde, e foram situadas na esfera da medicina social a partir da perspectiva da matriz higienista. O projeto médico da época foi efetivamente civilizar a população, considerada um tanto ignorante das técnicas modernas de saneamento e de higiene, física e/ou mental. As ideias do psiquismo também reaparecem renovadas nessas teses. A abordagem psiquiátrica de caráter mais organicista iria prevalecer, principalmente após a inauguração do primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, o Hospício Pedro II, iniciado em 1852 no Rio de Janeiro. A partir desse momento, as cátedras de psiquiatria higiênica, psiquiatria clínica e de doenças mentais foram criadas, as quais, em associação às cátedras já existentes de medicina forense, marcaram o começo da organização do campo da psiquiatria tanto em termos teóricos quanto práticos. Os principais autores estudados foram os psiquiatras franceses Philippe Pinel (1745–1826), Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772–1840) e Bénédict-Augustin Morel (1809–1873). Esses teóricos, adeptos do internamento em hospícios para os indivíduos que sofrem de doenças mentais, consideravam que a loucura tinha causas tanto físicas quanto morais. O tratamento que eles apoiavam incluía a disciplinarização do doente, rotinas rigorosas nos hospitais, e atividades para controlar as emoções e os sentimentos. Entre os doentes mentais, estavam incluídos os chamados idiotas e retardados. A teoria da degeneração de Esquirol postulava ainda que a alienação mental seria causada por predisposições inatas, agravadas por influências ambientais tanto físicas (clima, condições não higiênicas de alojamento ou de nutrição) como morais (ignorância, fanatismo, perturbação dos costumes). Nesse caso, o tratamento também incluiria a mudança de hábitos, uma questão psicológica (Jacó-Vilela, Esch, Coelho, & Rezende, 2004; Lourenço Filho, 2004; Pessotti, 1975; Rocha, 2004).
Outros autores que influenciaram a psiquiatria brasileira, mais próximo ao final do século XIX e início do século XX, foram Wilhelm Wundt (1832–1920), o fundador do laboratório de psicologia da Universidade de Leipzig, na Alemanha, em 1879, também conhecido como o fundador da psicologia científica, e Théodule Ribot (1839–1916), fundador da Sociedade de Psicologia Fisiológica na França, em 1885. Tanto Wundt quanto Ribot influenciaram o desenvolvimento da psiquiatria no Brasil na busca de apoiar a psicologia em estudos empíricos, rompendo com a tradição de especulações filosóficas (Lourenço Filho, 2004).
Essas novas fontes teóricas, na medida em que buscavam definições experimentais em psicopatologia, também foram importantes pelas suas propostas de intervenções práticas na gestão da vida humana em cidades brasileiras, as quais estavam iniciando o processo de expansão que se intensificaria ao longo do século XX. Essas intervenções visavam promover o contato mais direto dos profissionais da saúde mental com a realidade das famílias brasileiras, sobretudo a das periferias urbanas, que sofriam com a falta de oportunidades educacionais e eram fortemente influenciadas pelas crenças da cultura tradicional, ameríndia ou afro-brasileira (Machado, Loureiro, Luz, & Muricy, 1978).
Um documento interessante que fornece evidências do nível de informação sobre as tendências europeias na psicologia científica, que circulou no Brasil em meados do século XIX, é o livro publicado por Dr. Eduardo Ferreira França (1809-1857) na Bahia, em 1854.  França graduou-se com um diploma de medicina na Universidade de Paris em 1834, e tornou-se professor na Faculdade de Medicina da Bahia. Enquanto foi estudante em Paris, ele estudou as obras do filósofo francês Étienne Condillac (1714–1780), que defendia que todas as ideias provêm das sensações e propôs um método para analisar as ideias, reduzindo-as aos seus elementos mais simples. Estudou também as obras de Maine de Biran (1766-1824), um filósofo espiritualista que propôs a análise da consciência através da introspecção; os dois autores fizeram parte da história da psicologia na França (Nicolas, 2001).
A principal obra de França, ''Investigações em Psychologia'', publicada em 1973, é apresentada em dois volumes, um com 284 páginas e outro com 424 páginas. Considerado por Rocha (2004) um dos primeiros livros escritos nas Américas que contém a palavra “Psicologia” no título, a obra está dividida em seis seções, abordando os seguintes assuntos: (a) a consciência e suas faculdades; (b) modificabilidade (sensibilidade, afetividade); (c) motividade (movimentos); (d) faculdades intelectuais I (percepção interna e externa, relações entre suas qualidades e hábitos); (e) faculdades intelectuais II (sensibilidade cerebral, sono, sonhos, consciência, razão, memória, imaginação, abstração, composição, generalização, juízo, faculdade do futuro, faculdade da fé, ideia), instintos (físicos, intelectuais, sociais e morais); e (f) vontade. O autor refere-se à psicologia como uma ciência moral, e postula que “há no homem duas ordens bem distintas de fenômenos, os fisiológicos e os psicológicos; que a separação entre a fisiologia e a psicologia firma-se em uma base sólida. (. . .) Estas duas ciências esclarecem-se mutuamente, mas não deixam por isso de ser distintas e hoje não é lícito confundir a psicologia com a fisiologia sem mostrar que se desconhece o que é o homem” (França, 1973, p. 50). Nesse livro, escrito em 1854, França estava certamente anunciando o interesse pela psicologia científica que seria observado nos anos posteriores.
Ao final do século XIX, a influência do positivismo fortaleceu o movimento pela modernização do país. Para os intelectuais e políticos, influenciados pelo darwinismo social, “a forte presença de descendentes africanos e da miscigenação se tornou a principal justificativa para o atraso do país. A transformação da diferença biológica em justificativa da desigualdade social — como proposta pela teoria da degeneração na psiquiatria francesa — levou à conclusão de que, com o tipo de população que habitava o Brasil, o objetivo de construir uma nação civilizada como as da Europa era praticamente impossível” (Facchinetti & Jacó-Vilela, 2019, p. 3). Entretanto, nos próximos anos, novas medidas seriam tomadas pelos intelectuais brasileiros na tentativa de superar os problemas sociais do país.
== Psicologia Científica e a Criação dos Primeiros Laboratórios e Serviços de Saúde Mental ==

Edição das 21h19min de 5 de junho de 2023

Resumo

Os estudos sobre a história da psicologia brasileira geralmente se concentram na recepção e circulação de teorias e técnicas psicológicas elaboradas na Europa e na América do Norte, e nas suas aplicações em pesquisas e práticas psicológicas no país. Essa abordagem deve ser complementada com o estudo da transformação e produção do conhecimento psicológico proveniente da cultura brasileira, incluindo de suas camadas populares, e sua interação com as ideias importadas de outros países. Existem ao menos quatro raízes que estão presentes na formação da cultura brasileira: as ideias dos indígenas sobre a natureza e desenvolvimento humano; as contribuições da cultura africana para a compreensão do mundo psicológico, trazidas pelos africanos vendidos como escravos e transferidos ao Brasil entre os séculos XVI e XIX; as perspectivas europeias recebidas através do ensino da psicologia filosófica, introduzidas em instituições educacionais católicas no período colonial; e a psicologia científica, introduzida nas  faculdades públicas de medicina e em instituições de formação de professores a partir do século XIX. A profissão de psicólogo, nascida do encontro entre as profissões de médico e de educador, foi regulamentada em 1962. As tarefas do psicólogo foram definidas na época: avaliação psicológica através de testes mentais, diagnóstico de problemas mentais e comportamentais, orientação psicológica e psicoterapia. A profissão foi principalmente concebida para as elites intelectuais e sociais. A partir da década de 1990, com o crescente número de graduados, a participação dos psicólogos nas instituições de saúde pública, educação e de serviços sociais expandiu rapidamente. Consequentemente, os psicólogos começaram a desenvolver práticas e técnicas de intervenção mais adequadas às exigências das populações de baixa renda, imersas nas crenças e práticas da cultura popular brasileira. Esse diálogo colaborou para o surgimento de inovações na psicologia, tornando-a mais sensível às visões de mundo das culturas que compõem o panorama cultural brasileiro, e produzindo contribuições originais com um profundo impacto na psicologia contemporânea. Atualmente, os psicólogos profissionais brasileiros constituem uma das maiores comunidades de psicólogos no mundo, com uma forte presença nas redes de saúde mental, educação e serviços sociais. O trabalho dos psicólogos, fortemente influenciado por perspectivas teóricas que enfatizam a relação entre as dinâmicas socioculturais e a elaboração psicológica , é considerado relevante para a efetivação dos ideais dos direitos humanos neste momento.

Palavras-chave:

Palavras-chave: história da psicologia no Brasil, cultura brasileira, higiene mental, educação, profissão de psicólogo, psicologia nas políticas públicas.

Introdução — História da Psicologia e o Contexto Cultural

O conhecimento sobre a psique humana tem longa data (Robinson, 2013). As sociedades humanas são compostas por pessoas dotadas de reflexividade (Morawski, 2020), logo, refletem sobre si mesmas, suas vidas, pensamentos, sentimentos e ações, elaborando suas próprias concepções sobre a natureza e práticas humanas. A psicologia enquanto campo do conhecimento pode ser vista como “um conjunto de teorias e práticas enraizadas socialmente que tanto reificam quanto refletem os contextos de onde se originam e para onde retornam” (Pickren & Rutherford, 2010, p. xvii). Essas ideias e práticas ligadas à dimensão psicológica da existência humana podem ser, de maneira geral, incluídas dentro do campo de estudos da história das ideias psicológicas (Massimi, 2020). Elas também podem ser consideradas como parte da história social, quando vistas de uma perspectiva historiográfica externalista (Lakatos, 1989), focando em suas relações com o contexto social e cultural nas quais são produzidas ou apropriadas, em um processo denominado “indigenização”, quando são combinadas com ideias e demandas locais (Danziger, 2006; Kelley, 2002). Além disso, o conhecimento produzido por seres humanos sobre si mesmos pode influenciar a maneira como vivem e interpretam suas próprias ações em sociedade, um processo descrito por Hacking (1999) como “efeito looping”. Nesse sentido, a construção do conhecimento psicológico, compreendido como o conjunto de visões e interpretações dos pensamentos, sentimentos e ações humanas, está profundamente enraizado no contexto social e cultural onde é inventado, difundido e apropriado através da interação humana. Por esse motivo, o conhecimento psicológico está fortemente ligado à sua realidade geográfica e histórica.

Neste artigo, a história da psicologia no Brasil é abordada. Aqui, entende-se que a palavra “psicologia” se refere à história de um campo de conhecimentos culturais, filosóficos, científicos e profissionais, e de práticas sobre pensamentos, sentimentos e ações humanas, desenvolvidas no país desde o início da colonização portuguesa em 1500.

Os historiadores da psicologia geralmente descrevem o campo do pensamento psicológico em termos de ideias e explicações sobre a natureza humana produzidas por culturas e sociedades humanas em diferentes períodos históricos, a partir de um ponto de vista cultural ou filosófico, ou como um campo de investigação científica que faz parte da ciência moderna. Ideias psicológicas podem ser relacionadas à evolução do pensamento filosófico, destacando reflexões sobre a natureza humana e as estruturas psicológicas exploradas por antigos pensadores, na tentativa de estabelecer continuidade na história do pensamento (por exemplo, Allport, 1968; Boring, 1950; entre outros). Outros historiadores enxergam uma ruptura nessa história com o nascimento da ciência moderna, do século XVI em diante, principalmente a partir do século XIX, quando os primeiros laboratórios de psicologia foram inaugurados (Danziger, 2013; Hilgard, 1987; Reuchlin, 1999, entre outros). De acordo com Brožek (1999, p. 179), “o termo ‘psychologia’ apareceu no século XVI, na Europa, como um termo erudito equivalente ao título dos tratados tradicionalmente nomeados em latim como “De anima” (Da Alma)”, na tradição aristotélica. Vidal (2011) data o século XVIII como o período de institucionalização do campo da psicologia na modernidade.

A história da psicologia no Brasil também pode ser dividida em períodos, cada um deles dominado por perspectivas culturais ou filosóficas da compreensão humana, ou por abordagens científicas, empíricas, das mentes, sentimentos e comportamentos humanos, começando com a descoberta feita pelos navegadores portugueses, em 1500, do território da América do Sul onde o país se localiza. Esses períodos são: (1) o período colonial, entre 1500 e 1822, quando a região foi colonizada pelo império português e, brevemente, pelo império espanhol, que dominou Portugal entre 1580 e 1640 enquanto colonizava regiões da América Central e da América do Sul. Durante esse período, a população do país foi formada, miscigenando indígenas, colonizadores portugueses, missionários e comerciantes estrangeiros que vieram de outras regiões do globo, e escravos trazidos da África. Naquela época, a composição da população teve um impacto considerável no desenvolvimento das ideias psicológicas. Pode-se diferenciar as concepções dos indígenas sobre a natureza humana, os ensinamentos de padres católicos e missionários sobre as ideias da psique, derivadas da tradição aristotélico-tomista da filosofia, e as influências das mitologias e religiões populares da África. Como nenhuma universidade foi criada no país durante esse período, as elites brancas eram majoritariamente educadas em Portugal, na Universidade de Coimbra, ou em colégios jesuítas fundados nos maiores centros urbanos (Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo), onde circulavam as ideias da clássica tradição filosófica da Europa. (2) O período imperial, que começou com a declaração de independência de Portugal, em 1822, e terminou com a proclamação da república brasileira em 1889. Durante esse período, abordagens filosóficas e científicas da psique humana, que originaram na Europa, circularam nas recém criadas faculdades de medicina e direito, e contribuíram para a formação do higienismo e para a orientação moral da população por médicos em contato com as universidades europeias, um movimento que promoveu maior circulação da ciência moderna no interior do país. (3) O período republicano, de 1889 em diante, quando a circulação e o desenvolvimento da psicologia científica começaram nas recém criadas escolas de formação de professores, universidades e instituições de saúde mental, promovendo produções originais no campo da psicologia científica e a expansão dos serviços psicológicos. (4) De 1962 até o presente, quando a profissão de psicólogo foi regulamentada, e quando a formação de psicólogos a nível universitário foi expandida e contribuiu para a composição de uma das maiores comunidades de psicólogos no mundo, com uma forte conexão e diálogo com a cultura brasileira (Antunes, 1999; Massimi, 1990). Durante esse período, pode-se observar também uma contínua institucionalização dos programas de pesquisa e pós-graduação na área, com ênfase na relação entre psicologia e processos socioculturais.

Neste artigo, o termo “psicologia” será compreendido com diferentes significados, a depender do período histórico analisado. Reflexões sobre a psique humana e práticas sociais referentes às emoções e à esfera moral, durante o período colonial, serão compreendidas como parte da história das ideias psicológicas. Do século XIX em diante, com o estabelecimento dentro do país das instituições de ensino superior nas áreas da medicina e do direito, das escolas de formação de professores e o início de um sistema de saúde mental gerido por médicos, a palavra “psicologia” referenciará as produções intelectuais relativas à ciência moderna. Começando pela segunda metade do século XX, com a regulamentação legal da profissão de psicólogo e o aumento do número de atuantes no campo, na sua maioria mulheres, a palavra referenciará tanto as produções científicas quanto a aplicação do conhecimento psicológico nas instituições de educação, trabalho e saúde mental, assim como na prática privada. Durante esse período posterior, uma característica já observada nos períodos anteriores e reconhecida como uma contribuição original da psicologia produzida na América Latina, especialmente no Brasil (Campos, 2006; Jodelet, 2015) — a ênfase na dimensão sociocultural da experiência humana dentro do campo da psicologia, com uma notória presença da psicologia social na educação dos psicólogos no país —, será explorada e documentada no processo de profissionalização dos psicólogos brasileiros.

Este artigo se baseia em uma leitura metateórica da literatura mais recente sobre a história da psicologia no Brasil, desde o estabelecimento do grupo de pesquisa sobre história da psicologia na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Campos, Jacó-Vilela, & Massimi, 2010). Diversos trabalhos investigaram fontes originais encontradas em arquivos históricos brasileiros (Antunes, 1999; Assis & Peres, 2016; Bomfim, 2003; Facchinetti & Jacó-Vilela, 2019; Massimi, 1990; Massimi & Guedes, 2004; Rocha, 2004; entre outros). Outros estudos foram desenvolvidos, alguns com auxílio do Conselho Federal de Psicologia, fundado em 1971, documentando a história e avanços recentes na profissão de psicólogo no país (Bastos & Gondim, 2010; Bock, 1999; Campos, 2001; Conselho Federal de Psicologia, 1988, 1992, 1995; Yamamoto & Costa, 2010). Vários desses estudos documentam a interação entre a diversidade sociocultural do Brasil e o desenvolvimento da psicologia no país, seja como um campo de pensamentos filosóficos e culturais, de investigação científica ou de práticas profissionais.

Ideias Psicológicas no Período Colonial (1500-1908) — Encontros e Contradições entre Culturas

A cultura brasileira, que começou a ser formar em 1500 com a descoberta e colonização do imenso território da América do Sul pelo reino de Portugal, desenvolveu-se progressivamente a partir da miscigenação de diferentes povos: os indígenas, habitantes originários do território; os africanos, levados ao país para trabalharem como escravos nas grandes plantações e no meio urbano entre os séculos XVI e XIX; os próprios portugueses, que criaram organizações econômicas, políticas e culturais durante o longo período colonial entre o século XVI e o início do XIX; e também viajantes, comerciantes e imigrantes de diferentes partes do mundo que se estabeleceram no país ao longo de sua história (Azevedo, 1996; Ribeiro, 2015).

A contribuição desses grupos, das mais variadas origens, para a construção dos filamentos socioculturais que constituem a principal característica na formação do povo brasileiro, resultou em encontros entre diferentes visões de mundo e formas de vida social, acompanhados tanto pela empatia quanto pelo conflito. Para explicitar isso, as características psicológicas e psicossociais dos indígenas, europeus e africanos, que formaram essa cultura brasileira majoritariamente sincrética, serão brevemente apresentadas, tendo todas deixado profundas marcas ao longo do tempo. Uma destas, ainda presente na sociedade brasileira contemporânea, é a extrema desigualdade social e cultural estabelecida no país, com as elites tradicionais, detentoras do poder econômico e político, de um lado, e os outros grupos étnicos vivendo predominantemente na pobreza, do outro (Skidmore, 2004; Souza, 2018). A participação destes na distribuição de riquezas sempre foi limitada, apesar das contribuições bastante sofisticadas que incorporaram à diversificada composição social e cultural do Brasil.

Cultura Indígena

Quando os colonizadores portugueses desembarcaram pela primeira vez na parte leste da América do Sul, eles encontraram os habitantes originários, os aborígenes, os quais chamaram de “os povos indígenas”. Aproximadamente 1.000.000 de indígenas viviam espalhados ao longo do território em comunidades autônomas, ramificadas a partir de um tronco principal chamado Tupi-Guarani, o qual havia habitado a região por inúmeras gerações (Ribeiro, 2015). Esses povos tradicionais foram divididos em aldeias independentes uma das outras, que viviam sob um regime descrito como “comunismo primitivo” (Saviani, 2010), em comunidades que compartilhavam seus meios de subsistência. Eventualmente, as aldeias iriam entrar em conflito pela exploração do melhor pedaço de terra ou por outros motivos. A história dessas aldeias e de suas culturas foi transmitida oralmente, no interior de um sistema social baseado em laços familiares e comunitários.

As informações sobre os estilos de vida, representações do mundo, crenças e línguas dos povos indígenas na época da descoberta e durante o período colonial, estão apenas disponíveis em relatos de viajantes, colonizadores e missionários que estiveram no território que chamamos de Brasil hoje em dia. Esses relatos fornecem evidências dos diferentes pontos de vista dos visitantes em relação aos aspectos psicológicos e psicossociais da cultura aborígene.

Existem relatos que descrevem os povos indígenas vivendo em uma relação quase paradisíaca com a natureza, suas famílias, crianças e com a comunidade, consonante ao mito do bon sauvage de Rousseau, o qual alguns autores consideram ter sido inspirado por esses povos ancestrais encontrados na América (Dent, 1996). Nesses relatos, os habitantes da terra são retratados como pacíficos, e amorosos para com suas crianças (Massimi, 1990).

Outros relatos, como aqueles produzidos por Manoel da Nóbrega, que também foi um jesuíta e o primeiro líder provincial da Companhia de Jesus no Brasil, escritos entre 1549 (data do começo das missões jesuíticas no país) e 1561, fornecem uma visão mais pessimista da relação com os povos indígenas. Em seus relatos sobre o contato com os indígenas, Nóbrega relata tanto experiências positivas (a cordialidade dos indígenas ao receberem os missionários) quanto negativas, quando se depara com a resistência ao seu projeto de evangelização causado pelas crenças e costumes aborígenes (Massimi, 1990; Nóbrega, 2006).

O antropólogo Claude Lévi-Strauss (2007), ao descrever a estrutura de uma aldeia indígena no Brasil da década de 1930, percebeu o seguinte: o ser humano, para os nativos, não era considerado um indivíduo autônomo, mas uma pessoa, que faz parte de um universo sociológico existente desde tempos imemoriais, dentro do qual os papéis dele ou dela teriam sido desde sempre prescritos. Essa atribuição prévia de funções estaria inscrita na própria estrutura da aldeia, onde a localização das moradias e as regras para habitá-las determinariam os papéis sociais e as visões de mundo dos habitantes. Essa concepção, genericamente denominada “perspectivismo” na antropologia (Viveiros de Castro, 2002), enxerga o mundo como habitado por diferentes espécies de sujeitos (humanos e não humanos), os quais o apreendem a partir de diferentes pontos de vista. Nesse mosaico de perspectivas, tanto humanos quanto não humanos podem enxergar-se como pessoas, dotadas de espírito, e por vezes com intencionalidade. O universo seria então povoado com intencionalidades humanas e não humanas dotadas com suas próprias perspectivas. Essa cosmologia parece expressar uma certa fragilidade do humano diante das forças da natureza.

Cultura Europeia

A colonização do território brasileiro pelos portugueses começou em 1500, com sua descoberta feita por uma frota portuguesa que descia a costa africana a caminho das então chamadas Índias Orientais. Segundo Saviani (2010), tal processo foi realizado em três dimensões: tomando a posse da terra e explorando-a, o que implicava a subjugação dos habitantes locais (os moradores originais); sua educação na forma de aculturação, isto é, a imposição ao colonizado das práticas, técnicas, símbolos e valores dos colonizadores; e a catequização, compreendida como a busca de conversão do colonizado à religião do colonizador e sua disseminação. Nesse sentido, e como o estado português estava associado à religião católica, os primeiros missionários ligados à Igreja Católica Romana desempenharam um importante papel na primeira formatação das dimensões psicológica e psicossocial do ser humano no contexto colonial.

Os jesuítas, orientados diretamente por Inácio de Loyola e pela Companhia de Jesus, fundada por ele com o objetivo de levar a religião católica aos novos impérios coloniais sendo formados no Novo Mundo e na Ásia, inauguraram várias escolas nas primeiras cidades brasileiras, onde implantaram o método educacional do Ratio Studiorum e o ensino da psicologia filosófica (Saviani, 2010).

A psicologia ensinada no ciclo de estudos superiores das escolas jesuítas concentrava-se no estudo dos processos psicológicos descritos na matriz filosófica de Aristóteles e São Tomás de Aquino, e na leitura de tratados escritos em Coimbra, Portugal. Estes foram utilizados no ensino de filosofia da Universidade de Coimbra, e chegaram ao Brasil na bagagem dos missionários a partir do século XVI. Eles buscavam reconciliar a filosofia clássica com problemas do cotidiano, para que os padres pudessem transmitir conhecimento e valores em suas missões de evangelização (Massimi, 2020).

Essa psicologia ensinada nas escolas jesuíticas era utilizada por padres nas missas realizadas em inúmeras paróquias espalhadas por todo território brasileiro. Assim, enquanto as escolas promoviam uma formação de elite para os noviços, filhos de grandes proprietários de terras e de funcionários públicos, que moravam nas  cidades maiores  espalhadas ao longo da costa brasileira, a educação básica era dada nas residências das classes mais ricas e nas paróquias. Nessas paróquias, o sermão era proferido nas missas de domingo e em outras festividades; muitos dos famosos sermões foram publicados posteriormente. Essas falas dos religiosos tinham uma função educativa, sendo seus objetivos evangelizar a população e transmitir as histórias sagradas com seu significado moral. Nesse processo, eles ocuparam um lugar importante na transmissão da cultura cristã ocidental à população local, tanto urbana quanto rural (esta última sendo a maioria) (Massimi, 2020).

Cultura Africana

Outra fonte de conhecimento psicológico e de sincretismo cultural pode ser encontrada nas raízes africanas, as quais vieram a compor parte da cultura brasileira através da chegada de trabalhadores escravos, que contribuíram para a geração de riquezas na agricultura, criação de gado e mineração, constituindo o panorama econômico do período colonial a partir da metade do século XVI. Os africanos eram vendidos como escravos para trabalharem nas grandes propriedades rurais e, no ambiente urbano, nos lares das famílias mais prósperas. Por meio desse tráfico, o Brasil recebeu aproximadamente 5 milhões de africanos, representando 40% dos 12.5 milhões que embarcaram à América ao longo de três séculos e meio. Por esse motivo, hoje o país apresenta a segunda maior população negra do planeta, atrás apenas da Nigéria. Também foi, entre os países do Novo Mundo, o que mais demorou para abolir o tráfico de escravos (interrompido em 1850) e o último a proibir a própria escravidão, através da Lei Áurea de 1888, que proibiu o trabalho escravo em território brasileiro de maneira definitiva (Gomes, 2019).

O antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), que realizou estudos aprofundados sobre a composição da sociedade brasileira durante o período colonial, afirma que, a partir de 1532, tal composição era predominantemente formada por famílias rurais ou semi rurais, dependentes da agricultura e da escravidão, junto da influência intelectual da Companhia de Jesus. A família teria sido o fator colonizador por excelência, tanto como matriz econômica responsável pelas produtivas terras agrícolas — as plantations — bem como pela organização política, governada com mão de ferro pela aristocracia rural, sendo portanto uma fonte de normas culturais. Foi justamente a necessidade de trabalhadores nas grandes plantações que promoveu o tráfico de africanos escravizados, trazidos através do Oceano Atlântico por três séculos. Os africanos trouxeram consigo suas crenças e tradições culturais, e gradualmente  fizeram suas contribuições para a formação da cultura brasileira. Eles pertenciam a diversos povos africanos, especialmente aos grupos Bantu e Sudanês (Freyre, 1958).

O sistema escravocrata apresenta influências positivas e negativas na composição social brasileira. Pelo lado negativo, as características psicológicas e psicossociais que a escravidão promove não podem ser negadas: a disparidade social e política criada entre seres humanos (Schwarcz, 1993). A primeira tendência dos colonizadores havia sido, obviamente, tentar escravizar os indígenas, mas essa tendência se deparou com a implacável resistência dos catequistas, o que levou os donos de terra e comerciantes a buscarem a alternativa do tráfico negreiro, com todos os problemas e insuficiências que decorreram desse processo. Entre eles, houve principalmente a separação social entre pessoas livres e escravizados, e os hábitos nem um pouco humanitários que a situação provocou entre aqueles que estavam do lado privilegiado da relação senhor-escravo. Esse desequilíbrio de poder causado pela escravatura é o que teria gerado o preconceito de cor na cultura brasileira (uma maneira tendenciosa e antiética de justificar a escravidão dos africanos). Também foi responsável pela presença daquilo que o antropólogo Gilberto Freyre (1958) chamou de relações sadomasoquistas, junto das outras formas de autoritarismo exacerbado e desumano entre brancos e negros, numa dialética destrutiva.

Por outro lado, a presença dos africanos trouxe influências culturais e práticas com um forte impacto na mente popular, e na organização espontânea de um sistema comunitário de ajuda e aconselhamento em relação a questões psicológicas e psicossociais.  

Religiões de origem africana foram a fonte, por exemplo, do dito candomblé, na Bahia, ou da macumba, no Rio de Janeiro, religiões sincréticas com raízes no período colonial que misturam influências africanas, ameríndias, católicas e espíritas em sistemas religiosos de crenças e práticas panteístas, com muitos seguidores nas classes populares do Brasil (Bastide, 2001).

A presença de religiões e cultos de origem africana, portanto, como a macumba e o candomblé, tem marcado a sociedade brasileira desde o período colonial. Essa presença contribuiu para a disseminação de conhecimentos psicológicos e de práticas socioculturais entre as populações mais pobres, resultantes da mistura de elementos das culturas africana, ameríndia e cristã ocidental, com um forte impacto na cultura tradicional brasileira. A partir dessas misturas emergem novas formas de conceber os fenômenos psicológicos e psicossociais, e também a organização de uma extensa rede voltada para a reflexão sobre questões ligadas ao desenvolvimento humano, à regulação da coexistência entre as pessoas e grupos sociais e à vida familiar. Essas questões persistiram na sociedade brasileira, e seriam abordadas pelo conhecimento científico e psicológico que circulou no país a partir do final do século XVIII, sobretudo nas áreas médica e educacional.

Século XIX — O Período Imperial e a Inserção da Cultura Científica no Brasil

Para entender como a ciência moderna chegou ao Brasil, é necessário compreender as transformações que ocorreram no sistema educacional português e brasileiro ao final do século XVIII. Naquela época, uma profunda reforma educacional foi iniciada em Portugal, na tentativa de superar os ensinamentos ministrados pelos jesuítas e outras congregações, e promover “o desenvolvimento da cultura geral, o incremento das indústrias, o progresso das artes, o progresso das letras, o progresso científico, a vitalidade do comércio interno, a riqueza do comércio externo, a paz política, a elevação do nível de riqueza e bem-estar” (Pombal, citado por Saviani, 2010, p. 81). Essencialmente, o projeto da Coroa Portuguesa (que incluía o Brasil, sua maior e mais importante colônia) era claramente promover a modernização da sociedade, por meio de reformas educacionais que tornariam o ensino mais prático e compatível com a ciência moderna. A reforma social também incluiu a extinção dos privilégios da nobreza, a expulsão dos jesuítas do território português e a união da igreja ao estado (tornando-a independente de Roma). As escolas jesuítas, tanto na metrópole como nas colônias, foram fechadas, substituindo seu ensino ministrado às elites por um sistema de “aulas régias” mantido pela monarquia. Nesse sistema, o qual levou alguns anos para ser estabelecido em todo o império, os professores pagos pela Coroa Portuguesa deveriam ensinar a leitura, escrita, aritmética, noções do latim, grego, retórica, e filosofia em escolas chamadas “inferiores” ou em suas casas. Ao mesmo tempo, uma ampla reforma no ensino universitário foi levada a cabo, aplicada na Universidade de Coimbra (a mais importante do Império Português, fundada em 1290) e em outras instituições de ensino superior existentes em Portugal.

A criação dessas primeiras escolas profissionais no Brasil foi uma das consequências da transferência da capital do Império Português ao Rio de Janeiro em 1808, e a instituição, em 1816, do Reino Unido, o qual congregou os territórios de Portugal, Brasil, e das outras colônias portuguesas na África e Ásia. A transferência da corte, resultante da invasão de Napoleão à Península Ibérica, impulsionou a criação, em 1808, da Escola de Cirurgia da Bahia, e da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Ambas foram fundadas junto aos hospitais militares reais nessas cidades, os maiores centros urbanos brasileiros da época.

Em 1822, o país tornou-se politicamente independente com o imperador Pedro I (1798-1834), filho do rei de Portugal, D. João VI (1767-1826), que havia retornado à metrópole alguns anos antes, assumindo o poder. A independência promoveu a reorganização política, social e cultural do país, numa perspectiva mais pragmática. A nova elite dominante, liderada por intelectuais e profissionais formados na Europa (Coimbra, França, Bélgica), e inspirada pelas teorias mecanicistas e sensualistas, assumiu o controle do projeto de modernização do país. Nesse processo, escolas de nível superior, academias, sociedades científicas e bibliotecas foram criadas. Em 1832, as Faculdades de Medicina e de Direito foram efetivamente organizadas. As teses defendidas nessas novas faculdades de medicina constituem uma importante fonte para o desenvolvimento das primeiras abordagens científicas da psicologia no país. Estudos já realizados sobre esse conjunto de trabalhos e sobre as práticas médicas do período fornecem evidências de que a formação em psiquiatria, no decorrer do século XIX, foi construída principalmente sob a influência da medicina francesa e, em menor medida, sob as escolas alemãs e inglesas. Os profissionais da medicina, no geral um pequeno número quando comparados ao tamanho da população, eram generalistas, dando prioridade à chamada medicina familiar. Nessa posição, tratavam os membros do grupo familiar como clínicos, cirurgiões ou parteiros, e também exerciam a função de conselheiros, sendo consultados sobre dificuldades domésticas, problemas de saúde física, bem como questões de saúde mental. Assim, eles desempenharam um importante papel, não apenas como profissionais da saúde, mas também como veículos de transmissão da cultura científica e na orientação da população acerca dos hábitos de higiene, física ou mental. Algumas das teses, defendidas tanto na Faculdade de Medicina da Bahia quanto no Rio de Janeiro, lidam com os aspectos psicológicos e psicossociais da saúde, e foram situadas na esfera da medicina social a partir da perspectiva da matriz higienista. O projeto médico da época foi efetivamente civilizar a população, considerada um tanto ignorante das técnicas modernas de saneamento e de higiene, física e/ou mental. As ideias do psiquismo também reaparecem renovadas nessas teses. A abordagem psiquiátrica de caráter mais organicista iria prevalecer, principalmente após a inauguração do primeiro hospital psiquiátrico do Brasil, o Hospício Pedro II, iniciado em 1852 no Rio de Janeiro. A partir desse momento, as cátedras de psiquiatria higiênica, psiquiatria clínica e de doenças mentais foram criadas, as quais, em associação às cátedras já existentes de medicina forense, marcaram o começo da organização do campo da psiquiatria tanto em termos teóricos quanto práticos. Os principais autores estudados foram os psiquiatras franceses Philippe Pinel (1745–1826), Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772–1840) e Bénédict-Augustin Morel (1809–1873). Esses teóricos, adeptos do internamento em hospícios para os indivíduos que sofrem de doenças mentais, consideravam que a loucura tinha causas tanto físicas quanto morais. O tratamento que eles apoiavam incluía a disciplinarização do doente, rotinas rigorosas nos hospitais, e atividades para controlar as emoções e os sentimentos. Entre os doentes mentais, estavam incluídos os chamados idiotas e retardados. A teoria da degeneração de Esquirol postulava ainda que a alienação mental seria causada por predisposições inatas, agravadas por influências ambientais tanto físicas (clima, condições não higiênicas de alojamento ou de nutrição) como morais (ignorância, fanatismo, perturbação dos costumes). Nesse caso, o tratamento também incluiria a mudança de hábitos, uma questão psicológica (Jacó-Vilela, Esch, Coelho, & Rezende, 2004; Lourenço Filho, 2004; Pessotti, 1975; Rocha, 2004).

Outros autores que influenciaram a psiquiatria brasileira, mais próximo ao final do século XIX e início do século XX, foram Wilhelm Wundt (1832–1920), o fundador do laboratório de psicologia da Universidade de Leipzig, na Alemanha, em 1879, também conhecido como o fundador da psicologia científica, e Théodule Ribot (1839–1916), fundador da Sociedade de Psicologia Fisiológica na França, em 1885. Tanto Wundt quanto Ribot influenciaram o desenvolvimento da psiquiatria no Brasil na busca de apoiar a psicologia em estudos empíricos, rompendo com a tradição de especulações filosóficas (Lourenço Filho, 2004).

Essas novas fontes teóricas, na medida em que buscavam definições experimentais em psicopatologia, também foram importantes pelas suas propostas de intervenções práticas na gestão da vida humana em cidades brasileiras, as quais estavam iniciando o processo de expansão que se intensificaria ao longo do século XX. Essas intervenções visavam promover o contato mais direto dos profissionais da saúde mental com a realidade das famílias brasileiras, sobretudo a das periferias urbanas, que sofriam com a falta de oportunidades educacionais e eram fortemente influenciadas pelas crenças da cultura tradicional, ameríndia ou afro-brasileira (Machado, Loureiro, Luz, & Muricy, 1978).

Um documento interessante que fornece evidências do nível de informação sobre as tendências europeias na psicologia científica, que circulou no Brasil em meados do século XIX, é o livro publicado por Dr. Eduardo Ferreira França (1809-1857) na Bahia, em 1854.  França graduou-se com um diploma de medicina na Universidade de Paris em 1834, e tornou-se professor na Faculdade de Medicina da Bahia. Enquanto foi estudante em Paris, ele estudou as obras do filósofo francês Étienne Condillac (1714–1780), que defendia que todas as ideias provêm das sensações e propôs um método para analisar as ideias, reduzindo-as aos seus elementos mais simples. Estudou também as obras de Maine de Biran (1766-1824), um filósofo espiritualista que propôs a análise da consciência através da introspecção; os dois autores fizeram parte da história da psicologia na França (Nicolas, 2001).

A principal obra de França, Investigações em Psychologia, publicada em 1973, é apresentada em dois volumes, um com 284 páginas e outro com 424 páginas. Considerado por Rocha (2004) um dos primeiros livros escritos nas Américas que contém a palavra “Psicologia” no título, a obra está dividida em seis seções, abordando os seguintes assuntos: (a) a consciência e suas faculdades; (b) modificabilidade (sensibilidade, afetividade); (c) motividade (movimentos); (d) faculdades intelectuais I (percepção interna e externa, relações entre suas qualidades e hábitos); (e) faculdades intelectuais II (sensibilidade cerebral, sono, sonhos, consciência, razão, memória, imaginação, abstração, composição, generalização, juízo, faculdade do futuro, faculdade da fé, ideia), instintos (físicos, intelectuais, sociais e morais); e (f) vontade. O autor refere-se à psicologia como uma ciência moral, e postula que “há no homem duas ordens bem distintas de fenômenos, os fisiológicos e os psicológicos; que a separação entre a fisiologia e a psicologia firma-se em uma base sólida. (. . .) Estas duas ciências esclarecem-se mutuamente, mas não deixam por isso de ser distintas e hoje não é lícito confundir a psicologia com a fisiologia sem mostrar que se desconhece o que é o homem” (França, 1973, p. 50). Nesse livro, escrito em 1854, França estava certamente anunciando o interesse pela psicologia científica que seria observado nos anos posteriores.

Ao final do século XIX, a influência do positivismo fortaleceu o movimento pela modernização do país. Para os intelectuais e políticos, influenciados pelo darwinismo social, “a forte presença de descendentes africanos e da miscigenação se tornou a principal justificativa para o atraso do país. A transformação da diferença biológica em justificativa da desigualdade social — como proposta pela teoria da degeneração na psiquiatria francesa — levou à conclusão de que, com o tipo de população que habitava o Brasil, o objetivo de construir uma nação civilizada como as da Europa era praticamente impossível” (Facchinetti & Jacó-Vilela, 2019, p. 3). Entretanto, nos próximos anos, novas medidas seriam tomadas pelos intelectuais brasileiros na tentativa de superar os problemas sociais do país.

Psicologia Científica e a Criação dos Primeiros Laboratórios e Serviços de Saúde Mental