A Psicologia de Aristóteles: mudanças entre as edições

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Tradução do verbete da Stanford Encyclopedia of Philosophy: "Aristotle Psychology" - publicado em 11/01/2000 e revisado em 23/08/2010-, feita por André Elias Morreli e revisada por Yuri Pereira.
Tradução do verbete da Stanford Encyclopedia of Philosophy: "Aristotle Psychology" - publicado em 11/01/2000 e revisado em 23/08/2010-, feita por André Elias Morreli e revisada por Yuri Pereira.
= Introdução =
=Introdução=
Aristóteles (384-322 AC) nasceu na Macedônia, noroeste da atual Grécia, mas passou a maior parte de sua vida adulta em Atenas. Sua vida está dividida em dois períodos. Primeiro como membro da Academia de Platão (367-347AC), e depois como diretor da própria escola, o Liceu (334-323AC). Passou um período em Assos e Lesbos, além de um breve retorno à Macedônia. Seus anos fora de Atenas foram utilizados, em sua maior parte, fazendo pesquisas na área da biologia e escrevendo. Com base nos seus escritos, a obra mais importante de Aristóteles sobre psicologia provavelmente pertence à sua segunda temporada em Atenas, tal qual a maior parte do seu período maduro. Seu trabalho principal em Psicologia, ''De Anima'', reflete diferentes caminhos do seu interesse na taxonomia e suas sofisticadas teorias físicas e metafísicas.
Aristóteles (384-322 AC) nasceu na Macedônia, noroeste da atual Grécia, mas passou a maior parte de sua vida adulta em Atenas. Sua vida está dividida em dois períodos. Primeiro como membro da Academia de Platão (367-347AC), e depois como diretor da própria escola, o Liceu (334-323AC). Passou um período em Assos e Lesbos, além de um breve retorno à Macedônia. Seus anos fora de Atenas foram utilizados, em sua maior parte, fazendo pesquisas na área da biologia e escrevendo. Com base nos seus escritos, a obra mais importante de Aristóteles sobre psicologia provavelmente pertence à sua segunda temporada em Atenas, tal qual a maior parte do seu período maduro. Seu trabalho principal em Psicologia, ''De Anima'', reflete diferentes caminhos do seu interesse na taxonomia e suas sofisticadas teorias físicas e metafísicas.


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Há, contudo, um ponto de contato entre as investigações de Aristóteles sobre a alma e as disciplinas contemporâneas da Psicologia: em ambos os casos, problemas diferentes permitem questionamentos e métodos de investigação diferentes, resultando numa dificuldade de entender como tão diferentes investigações podem ser conduzidas sob o mesmo rótulo, e que poderiam perfeitamente pertencer a qualquer outra disciplina. Alguém investigando os métodos da psicanálise freudiana não irá, certamente, ver qualquer semelhança entre esta e os métodos e objetivos de um psicólogo estudioso do cérebro ou um comportamentalista genético. Da mesma forma, Aristóteles parece ser relutante em investigar a alma como pertencente exclusivamente à ciência natural, que é, para ele, uma área da ciência teórica voltada para investigação de seres capazes de mostrar mudanças. Ele separa “física”, isto é, ciência natural, da matemática e da “filosofia primeira” ao longo de seus escritos (''Meta''. Vi 1 1025b27-30, 1026a18; xi 7 1064a16-19, b1-3.) Por um lado, ele insiste que, por conta dos vários estados psicológicos, incluindo raiva, alegria, coragem, pena, amor e ódio, tudo envolve, central e obviamente, o corpo. O estudo da alma “já está na alçada do cientista natural” (''De Anima'', i 1 403ª16-28). Ao mesmo tempo, porém, ele insiste que a mente ou o intelecto (''nous'') pode não estar presente no corpo da mesma forma que estes vários estados, então ele recusa um estudo da alma exclusivamente focado nas ciências naturais (''Meta''. Vi 1 1026a4-6; ''De Partibus Animalium'' i 1 645a33-b10). Possivelmente isto explica o porquê, no capítulo de abertura de ''De Anima'', Aristóteles relata uma profunda e verdadeira perplexidade sobre o melhor método de investigação dos assuntos psicológicos (''De Anima'' i 1 402a16-22). Se ciências diferentes empregam métodos diferentes, e o estudo da alma fica dualizado ou bifurcado, então não poderia pertencer a uma única ciência; isso se mostra uma verdadeira dificuldade em definir qual o melhor método de investigação sobre esse assunto. Parece correto dizer que tais dilemas jamais chegam a ser verdadeiramente superados. Embora uma abordagem totalmente naturalista da filosofia da ciência esteja predominante atualmente, jamais será possível afirmar com total certeza que a disciplina da psicologia continuará utilizando os métodos ''a priori'' tradicionais; algumas áreas das ciências cognitivas parecem fazer uma mescla dos dois. De qualquer forma, tendo em vista as dificuldades apontadas para o estudo da alma, Aristóteles apresenta uma certa modéstia quando a toma como objeto de investigação: “Obter qualquer conhecimento verdadeiro sobre a alma é certamente tarefa das mais difíceis” (De Anima, i 1 402a10-11).
Há, contudo, um ponto de contato entre as investigações de Aristóteles sobre a alma e as disciplinas contemporâneas da Psicologia: em ambos os casos, problemas diferentes permitem questionamentos e métodos de investigação diferentes, resultando numa dificuldade de entender como tão diferentes investigações podem ser conduzidas sob o mesmo rótulo, e que poderiam perfeitamente pertencer a qualquer outra disciplina. Alguém investigando os métodos da psicanálise freudiana não irá, certamente, ver qualquer semelhança entre esta e os métodos e objetivos de um psicólogo estudioso do cérebro ou um comportamentalista genético. Da mesma forma, Aristóteles parece ser relutante em investigar a alma como pertencente exclusivamente à ciência natural, que é, para ele, uma área da ciência teórica voltada para investigação de seres capazes de mostrar mudanças. Ele separa “física”, isto é, ciência natural, da matemática e da “filosofia primeira” ao longo de seus escritos (''Meta''. Vi 1 1025b27-30, 1026a18; xi 7 1064a16-19, b1-3.) Por um lado, ele insiste que, por conta dos vários estados psicológicos, incluindo raiva, alegria, coragem, pena, amor e ódio, tudo envolve, central e obviamente, o corpo. O estudo da alma “já está na alçada do cientista natural” (''De Anima'', i 1 403ª16-28). Ao mesmo tempo, porém, ele insiste que a mente ou o intelecto (''nous'') pode não estar presente no corpo da mesma forma que estes vários estados, então ele recusa um estudo da alma exclusivamente focado nas ciências naturais (''Meta''. Vi 1 1026a4-6; ''De Partibus Animalium'' i 1 645a33-b10). Possivelmente isto explica o porquê, no capítulo de abertura de ''De Anima'', Aristóteles relata uma profunda e verdadeira perplexidade sobre o melhor método de investigação dos assuntos psicológicos (''De Anima'' i 1 402a16-22). Se ciências diferentes empregam métodos diferentes, e o estudo da alma fica dualizado ou bifurcado, então não poderia pertencer a uma única ciência; isso se mostra uma verdadeira dificuldade em definir qual o melhor método de investigação sobre esse assunto. Parece correto dizer que tais dilemas jamais chegam a ser verdadeiramente superados. Embora uma abordagem totalmente naturalista da filosofia da ciência esteja predominante atualmente, jamais será possível afirmar com total certeza que a disciplina da psicologia continuará utilizando os métodos ''a priori'' tradicionais; algumas áreas das ciências cognitivas parecem fazer uma mescla dos dois. De qualquer forma, tendo em vista as dificuldades apontadas para o estudo da alma, Aristóteles apresenta uma certa modéstia quando a toma como objeto de investigação: “Obter qualquer conhecimento verdadeiro sobre a alma é certamente tarefa das mais difíceis” (De Anima, i 1 402a10-11).
= Hilemorfismo em geral =
=Hilemorfismo em geral=
Em ''De Anima'', Aristóteles faz uso intenso de uma terminologia técnica que foi introduzida e desenvolvida em diferentes partes de seus trabalhos. Ele se vale, por exemplo, de um vocabulário derivado de suas teorias físicas e metafísicas, onde a alma é a “primeira actualização<sup>[[#sdfootnote1sym|<sup>1</sup>]]</sup> de um corpo orgânico natural” (''De Anima'' ii 1, 412b5-6), isto é, uma “substância com forma de um corpo natural que tem a vida em potência” (''De Anima'' ii 1, 412a20-1) e, similarmente, que é “a primeira atualização de um corpo natural que tem a vida em potência” (''De Anima'' ii 1, 412a27-8), tudo podendo ser aplicado a plantas, animais e seres humanos indistintamente.
Em ''De Anima'', Aristóteles faz uso intenso de uma terminologia técnica que foi introduzida e desenvolvida em diferentes partes de seus trabalhos. Ele se vale, por exemplo, de um vocabulário derivado de suas teorias físicas e metafísicas, onde a alma é a “primeira actualização<sup>[[#sdfootnote1sym|<sup>1</sup>]]</sup> de um corpo orgânico natural” (''De Anima'' ii 1, 412b5-6), isto é, uma “substância com forma de um corpo natural que tem a vida em potência” (''De Anima'' ii 1, 412a20-1) e, similarmente, que é “a primeira atualização de um corpo natural que tem a vida em potência” (''De Anima'' ii 1, 412a27-8), tudo podendo ser aplicado a plantas, animais e seres humanos indistintamente.


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Na tentativa de entender a psicologia aristotélica, a origem do Hilemorfismo de Aristóteles é importante por duas razões. Em primeiro lugar o Hilemorfismo aristotélico utiliza duas diferentes, porém relacionadas, noções de forma: uma é a essencial para a coisa existir, e outra é a casual ou acidental. Na sua visão da alma e suas propriedades, Aristóteles emprega ambas as noções: a alma como forma essencial e, na mesma medida, a percepção envolveria sua aquisição das formas acidentais. A segunda razão, por conta do fato de que o Hilemorfismo aristotélico foi desenvolvido inicialmente para lidar com problemas de mudança e criação, sua aplicação numa psicologia filosófica por vezes é conflituoso, a ponto de Aristóteles não querer, a princípio, tratar todas as instâncias da percepção como instâncias de mudança de um objeto contínuo. Além disso, como veremos, às vezes é difícil entender bem como Aristóteles pode realmente ver o corpo como a matéria de um ser humano da mesma forma que o bronze o é para a estátua. Uma quantidade de bronze pode existir indefinidamente, pode ter potencial, mas não efetivamente ser uma estátua de um grande herói. Não é um paralelo adequado para o caso do corpo: o corpo não é uma coisa para a qual se espera apenas a conformação com a alma. Talvez, de alguma forma, corpos humanos se tornam corpos humanos ao receberem a alma, ou serem “almados”. Se fosse assim eles poderiam trocar de matéria da mesma forma que vimos na teoria aristotélica da geração hilemórfica. (Para mais discussões sobre o tema, depois de ler a próxima parte, veja o suplemento: Um problema fundamental sobre Hilemorfismo<sup>[[#sdfootnote2sym|<sup>2</sup>]]</sup>).
Na tentativa de entender a psicologia aristotélica, a origem do Hilemorfismo de Aristóteles é importante por duas razões. Em primeiro lugar o Hilemorfismo aristotélico utiliza duas diferentes, porém relacionadas, noções de forma: uma é a essencial para a coisa existir, e outra é a casual ou acidental. Na sua visão da alma e suas propriedades, Aristóteles emprega ambas as noções: a alma como forma essencial e, na mesma medida, a percepção envolveria sua aquisição das formas acidentais. A segunda razão, por conta do fato de que o Hilemorfismo aristotélico foi desenvolvido inicialmente para lidar com problemas de mudança e criação, sua aplicação numa psicologia filosófica por vezes é conflituoso, a ponto de Aristóteles não querer, a princípio, tratar todas as instâncias da percepção como instâncias de mudança de um objeto contínuo. Além disso, como veremos, às vezes é difícil entender bem como Aristóteles pode realmente ver o corpo como a matéria de um ser humano da mesma forma que o bronze o é para a estátua. Uma quantidade de bronze pode existir indefinidamente, pode ter potencial, mas não efetivamente ser uma estátua de um grande herói. Não é um paralelo adequado para o caso do corpo: o corpo não é uma coisa para a qual se espera apenas a conformação com a alma. Talvez, de alguma forma, corpos humanos se tornam corpos humanos ao receberem a alma, ou serem “almados”. Se fosse assim eles poderiam trocar de matéria da mesma forma que vimos na teoria aristotélica da geração hilemórfica. (Para mais discussões sobre o tema, depois de ler a próxima parte, veja o suplemento: Um problema fundamental sobre Hilemorfismo<sup>[[#sdfootnote2sym|<sup>2</sup>]]</sup>).
= Relações corpo e alma hilemórficas: materialismo, dualismo, ''sui generis''? =
=Relações corpo e alma hilemórficas: materialismo, dualismo, ''sui generis''?=
Aplicando seu Hilemorfismo geral nas relações corpo-alma, Aristóteles afirma que obteremos a seguinte analogia:
Aplicando seu Hilemorfismo geral nas relações corpo-alma, Aristóteles afirma que obteremos a seguinte analogia: alma : corpo :: forma : matéria :: forma de Hermes : bronze.
 
 
 
alma : corpo :: forma : matéria :: forma de Hermes : bronze
 
 


Se a alma tem uma relação com o corpo da mesma forma que a estátua tem uma relação com sua base material, então nós poderemos esperar que algumas características gerais sejam comum a ambos; dessa forma nós devemos ser capazes de verificar algumas consequências imediatas no tocante às relações entre corpo e alma. Logo de início algumas questões sobre a unidade da alma e do corpo, um problema que interessa igualmente à substancialistas (dualistas) e materialistas, recebem uma resposta imediata. Materialistas defendem que todos os estados mentais são também estados físicos; o que é refutado por substancialistas, pois estes defendem que a alma é objeto de estados mentais os quais podem existir isoladamente, quando separadas do corpo. De certa forma, as questões que possibilitam essa querela caem por terra. Se nós não pensarmos que há uma questão importante ou ao menos interessante sobre a forma de Hermes e sua base material serem uma coisa só, não devemos supor que há uma questão urgente ou especial sobre corpo e alma serem um. Então Aristóteles afirma: “Não é necessário perguntar se alma e corpo são uma coisa só, da mesma forma que não é necessário perguntar se a cera e sua forma são a mesma coisa, nem geralmente se a matéria de cada coisa e aquilo que é a matéria são uma. Pois mesmo se um ser fala de si de várias maneiras, aquilo que é falado é sua atualidade” (''De Anima'', ii 1, 412b6-9). Aristóteles não está evitando as questões sobre a unidade do corpo e alma, parece que ele vê que tais questões são respondidas rapidamente ou são, de alguma forma, sem importância. Se nós não perdemos tempo pensando sobre se a cera de uma vela e sua forma são um só, então deveríamos nos preocupar tanto com o problema da unidade do corpo e da alma. O resultado dessas considerações é que se deve encaixar as relações corpo e alma numa explicação padrão hilemórfica mais ampla, nos termos de quais questões de unidade normalmente não surgem.
Se a alma tem uma relação com o corpo da mesma forma que a estátua tem uma relação com sua base material, então nós poderemos esperar que algumas características gerais sejam comum a ambos; dessa forma nós devemos ser capazes de verificar algumas consequências imediatas no tocante às relações entre corpo e alma. Logo de início algumas questões sobre a unidade da alma e do corpo, um problema que interessa igualmente à substancialistas (dualistas) e materialistas, recebem uma resposta imediata. Materialistas defendem que todos os estados mentais são também estados físicos; o que é refutado por substancialistas, pois estes defendem que a alma é objeto de estados mentais os quais podem existir isoladamente, quando separadas do corpo. De certa forma, as questões que possibilitam essa querela caem por terra. Se nós não pensarmos que há uma questão importante ou ao menos interessante sobre a forma de Hermes e sua base material serem uma coisa só, não devemos supor que há uma questão urgente ou especial sobre corpo e alma serem um. Então Aristóteles afirma: “Não é necessário perguntar se alma e corpo são uma coisa só, da mesma forma que não é necessário perguntar se a cera e sua forma são a mesma coisa, nem geralmente se a matéria de cada coisa e aquilo que é a matéria são uma. Pois mesmo se um ser fala de si de várias maneiras, aquilo que é falado é sua atualidade” (''De Anima'', ii 1, 412b6-9). Aristóteles não está evitando as questões sobre a unidade do corpo e alma, parece que ele vê que tais questões são respondidas rapidamente ou são, de alguma forma, sem importância. Se nós não perdemos tempo pensando sobre se a cera de uma vela e sua forma são um só, então deveríamos nos preocupar tanto com o problema da unidade do corpo e da alma. O resultado dessas considerações é que se deve encaixar as relações corpo e alma numa explicação padrão hilemórfica mais ampla, nos termos de quais questões de unidade normalmente não surgem.
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No mesmo sentido, então, a presença da alma explica porque esta matéria é a matéria de um ser humano, em diferenciação a outro tipo de coisa. Agora, esta forma de observar as relações mente-corpo como um caso especial de relação forma-matéria trata a alma como uma parte integrante de qualquer explicação completa de qualquer ser vivo de qualquer tipo. Para este grau Aristóteles pensa que Platão e outros dualistas estão corretos ao salientar a importância da alma na explicação de seres vivos. Ao mesmo tempo ele vê seu comprometimento na separabilidade de alma e corpo como injustificada apenas pelo apelo à causa formal: ele vai entender que a alma é distinta do corpo, e ela na verdade é a actualização do corpo, mas ele vê que estas concessões, por si próprias, não conseguem manter a suposição de que a alma pode existir fora ou sem o corpo. Seu Hilemorfismo, então, não subscreve nem o materialismo redutor nem o dualismo platônico. Em vez disso, ele procura se situar num ponto mediano entre essas duas alternativas, apontando implicitamente, e com razão, que não são opções exaustivas.
No mesmo sentido, então, a presença da alma explica porque esta matéria é a matéria de um ser humano, em diferenciação a outro tipo de coisa. Agora, esta forma de observar as relações mente-corpo como um caso especial de relação forma-matéria trata a alma como uma parte integrante de qualquer explicação completa de qualquer ser vivo de qualquer tipo. Para este grau Aristóteles pensa que Platão e outros dualistas estão corretos ao salientar a importância da alma na explicação de seres vivos. Ao mesmo tempo ele vê seu comprometimento na separabilidade de alma e corpo como injustificada apenas pelo apelo à causa formal: ele vai entender que a alma é distinta do corpo, e ela na verdade é a actualização do corpo, mas ele vê que estas concessões, por si próprias, não conseguem manter a suposição de que a alma pode existir fora ou sem o corpo. Seu Hilemorfismo, então, não subscreve nem o materialismo redutor nem o dualismo platônico. Em vez disso, ele procura se situar num ponto mediano entre essas duas alternativas, apontando implicitamente, e com razão, que não são opções exaustivas.
= Capacidades ou faculdades do psiquismo =
=Capacidades ou faculdades do psiquismo=
Embora estivesse disposto a oferecer uma explicação simples da alma em termos gerais, Aristóteles dedicou a maior parte de seu ''De Anima'' para detalhar investigações sobre capacidades ou faculdades individuais da alma, cuja lista inicial incluiu a nutrição, a percepção e a mente, recebendo a percepção a maior parte da atenção. Depois dele introduz o desejo, uma faculdade mais discreta, porém pareada com as apresentadas inicialmente. A mais ampla é a nutrição, que é compartilhada por todos os organismos vivos; enquanto os animais têm adicionalmente esta e a faculdade da percepção; somente organismos humanos possuem mente. Aristóteles sustenta que os vários tipos de alma, nutritiva, de percepção e a intelectual, formam um tipo de hierarquia. Qualquer criatura com razão terá também a percepção; todos os seres com percepção também tem a habilidade de mover-se para nutrição e reprodução; porém o contrário não acontece. Dessa forma as plantas ocorrem apenas com a alma nutricional, animais possuem tanto faculdades nutricionais como de percepção, e os seres humanos teriam os três tipos. As razões disto são teleológicas. Ou seja, todas as criaturas vivas crescem, atingem a maturidade e definham. Sem a capacidade nutricional, essas atividades são impossíveis (''De Anima'' III 12, 434a22-434b18;. cf ''De Partibus Animalium'' iv 10, 687a24-690a10; ''Metaphysics'' xii 10, 1075a16-25). Então, conclui Aristóteles, a psicologia deve investigar não apenas a percepção e o pensamento, mas também a nutrição.
Embora estivesse disposto a oferecer uma explicação simples da alma em termos gerais, Aristóteles dedicou a maior parte de seu ''De Anima'' para detalhar investigações sobre capacidades ou faculdades individuais da alma, cuja lista inicial incluiu a nutrição, a percepção e a mente, recebendo a percepção a maior parte da atenção. Depois dele introduz o desejo, uma faculdade mais discreta, porém pareada com as apresentadas inicialmente. A mais ampla é a nutrição, que é compartilhada por todos os organismos vivos; enquanto os animais têm adicionalmente esta e a faculdade da percepção; somente organismos humanos possuem mente. Aristóteles sustenta que os vários tipos de alma, nutritiva, de percepção e a intelectual, formam um tipo de hierarquia. Qualquer criatura com razão terá também a percepção; todos os seres com percepção também tem a habilidade de mover-se para nutrição e reprodução; porém o contrário não acontece. Dessa forma as plantas ocorrem apenas com a alma nutricional, animais possuem tanto faculdades nutricionais como de percepção, e os seres humanos teriam os três tipos. As razões disto são teleológicas. Ou seja, todas as criaturas vivas crescem, atingem a maturidade e definham. Sem a capacidade nutricional, essas atividades são impossíveis (''De Anima'' III 12, 434a22-434b18;. cf ''De Partibus Animalium'' iv 10, 687a24-690a10; ''Metaphysics'' xii 10, 1075a16-25). Então, conclui Aristóteles, a psicologia deve investigar não apenas a percepção e o pensamento, mas também a nutrição.


Há certa controvérsia sobre qual das habilidades psíquicas mencionadas por Aristóteles em ''De Anima'' se qualifica como faculdades totalmente autônomas. Ele certamente toma os três tipos de alma mencionados acima são centrais e relevantes. Na verdade ele propõe uma hierarquia da vida baseada nessa diferenciação. Ainda assim ele discute duas outras capacidades, imaginação (''De Anima'' iii 3) e desejo (''De Anima'' iii 9 e 10), e apela para ambas em suas explicações sobre o pensamento e a filosofia do movimento. Porém ele pouco escreve sobre suas definições. Ele claramente viu a imaginação como uma faculdade subordinada, integrada de várias formas às faculdades da nutrição, percepção e pensamento. O desejo é ainda mais complexo. Apesar de não aparecer isolado da faculdade perceptiva (''De Anima'' iii 7 412a12-14), o desejo aparece, no final, elevado a uma capacidade plena, principalmente devido ao seu papel na explicação do comportamento propositado. Suas discussões sobre a imaginação e o desejo levantam questões interessantes sobre como Aristóteles via as diferentes capacidades da alma em integração numa forma unificada. Essas discussões também levantam questões sobre as outras faculdades e de como Aristóteles concebia a unidade de toda a alma. Alguns estudiosos se contentam em caracterizar a alma aristotélica como um conjunto ou soma de capacidades, enquanto que o próprio Aristóteles exige claramente uma forma de unidade não-agregadora (''De'' ''Anima'' ii 3 414b28-32, cf. iii 9 432a-B6).
Há certa controvérsia sobre qual das habilidades psíquicas mencionadas por Aristóteles em ''De Anima'' se qualifica como faculdades totalmente autônomas. Ele certamente toma os três tipos de alma mencionados acima são centrais e relevantes. Na verdade ele propõe uma hierarquia da vida baseada nessa diferenciação. Ainda assim ele discute duas outras capacidades, imaginação (''De Anima'' iii 3) e desejo (''De Anima'' iii 9 e 10), e apela para ambas em suas explicações sobre o pensamento e a filosofia do movimento. Porém ele pouco escreve sobre suas definições. Ele claramente viu a imaginação como uma faculdade subordinada, integrada de várias formas às faculdades da nutrição, percepção e pensamento. O desejo é ainda mais complexo. Apesar de não aparecer isolado da faculdade perceptiva (''De Anima'' iii 7 412a12-14), o desejo aparece, no final, elevado a uma capacidade plena, principalmente devido ao seu papel na explicação do comportamento propositado. Suas discussões sobre a imaginação e o desejo levantam questões interessantes sobre como Aristóteles via as diferentes capacidades da alma em integração numa forma unificada. Essas discussões também levantam questões sobre as outras faculdades e de como Aristóteles concebia a unidade de toda a alma. Alguns estudiosos se contentam em caracterizar a alma aristotélica como um conjunto ou soma de capacidades, enquanto que o próprio Aristóteles exige claramente uma forma de unidade não-agregadora (''De'' ''Anima'' ii 3 414b28-32, cf. iii 9 432a-B6).
= Nutrição =
=Nutrição=
Quando voltamos nossa atenção para as faculdades individuais da alma, Aristóteles considera primeiro a nutrição, e o faz por duas razões relacionadas. A primeira é bem direta: a psicologia estuda todos os entes animados, e o aspecto nutritivo da alma está presente, naturalmente, em todas as coisas vivas, uma vez que é “a primeira e a mais comum das capacidades da alma, em virtude da qual pertence a todas as coisas vivas (''De Anima'' 4, 415a24-25). A segunda razão é um pouco mais complexa, tendo raiz teleológica. Tendo em vista que as formas mais superiores da alma pressupõe nutrição, sua explicação é prioritária para a as mesmas, na ordem da exposição aristotélica.
Quando voltamos nossa atenção para as faculdades individuais da alma, Aristóteles considera primeiro a nutrição, e o faz por duas razões relacionadas. A primeira é bem direta: a psicologia estuda todos os entes animados, e o aspecto nutritivo da alma está presente, naturalmente, em todas as coisas vivas, uma vez que é “a primeira e a mais comum das capacidades da alma, em virtude da qual pertence a todas as coisas vivas (''De Anima'' 4, 415a24-25). A segunda razão é um pouco mais complexa, tendo raiz teleológica. Tendo em vista que as formas mais superiores da alma pressupõe nutrição, sua explicação é prioritária para a as mesmas, na ordem da exposição aristotélica.


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De qualquer forma a discussão aristotélica da nutrição é própria de sua abordagem geral das capacidades da alma. Suas discussões normalmente ocorrem em dois níveis. Por um lado, ele busca fornecer uma explicação para algum fenômeno relevante. Ao mesmo tempo, seu interesse em definições só se completa quando condicionado às suas preocupações metodológicas e metafísicas. Por conseguinte, ele tenta capturar a natureza das propriedades dos entes enquanto investiga se as explicações reducionistas das faculdades individuais são plausíveis. Dessa forma, pelo menos, as investigações de Aristóteles refletem seu interesse em estabelecer uma série de questões interligadas como método, incluindo as mais notáveis questões a respeito da plausibilidade das mais relevantes características das abordagens reducionistas sobre a vida. Estes mesmos interesses são observados em suas discussões sobre a percepção e a mente.
De qualquer forma a discussão aristotélica da nutrição é própria de sua abordagem geral das capacidades da alma. Suas discussões normalmente ocorrem em dois níveis. Por um lado, ele busca fornecer uma explicação para algum fenômeno relevante. Ao mesmo tempo, seu interesse em definições só se completa quando condicionado às suas preocupações metodológicas e metafísicas. Por conseguinte, ele tenta capturar a natureza das propriedades dos entes enquanto investiga se as explicações reducionistas das faculdades individuais são plausíveis. Dessa forma, pelo menos, as investigações de Aristóteles refletem seu interesse em estabelecer uma série de questões interligadas como método, incluindo as mais notáveis questões a respeito da plausibilidade das mais relevantes características das abordagens reducionistas sobre a vida. Estes mesmos interesses são observados em suas discussões sobre a percepção e a mente.
= Percepção =
=Percepção=
Aristóteles dedica bastante atenção à percepção, discutindo tanto a percepção em geral como em sentido individual. Nos dois casos, suas discussões são desenvolvidas em termos do Hilemorfismo. A percepção é a capacidade da alma de distinguir animais de plantas; na verdade ter a faculdade perceptiva é essencial no animal (''De Sensu'' I, 436b10-12); todo animal tem, ao menos, o tato, contudo a maioria tem as outras modalidades sensoriais (''De Anima'' ii 2 413b4-7). Pelo menos de forma geral, os animais devem ter percepção se quiserem se manter vivos. Logo, supôs Aristóteles, a percepção é um provável fundamento teleológico na compreensão dos animais como essencialmente capazes de perceber (''De Anima'' ii 3, 414b6-9, 434ª30-b4; De Sensu 1, 436b16-17). Se um animal cresceu até a maturidade e reprodução, ele deve ser capaz de se nutrir e caminhar adequadamente pelo seu ambiente. A percepção serve a estes propósitos.
Aristóteles dedica bastante atenção à percepção, discutindo tanto a percepção em geral como em sentido individual. Nos dois casos, suas discussões são desenvolvidas em termos do Hilemorfismo. A percepção é a capacidade da alma de distinguir animais de plantas; na verdade ter a faculdade perceptiva é essencial no animal (''De Sensu'' I, 436b10-12); todo animal tem, ao menos, o tato, contudo a maioria tem as outras modalidades sensoriais (''De Anima'' ii 2 413b4-7). Pelo menos de forma geral, os animais devem ter percepção se quiserem se manter vivos. Logo, supôs Aristóteles, a percepção é um provável fundamento teleológico na compreensão dos animais como essencialmente capazes de perceber (''De Anima'' ii 3, 414b6-9, 434ª30-b4; De Sensu 1, 436b16-17). Se um animal cresceu até a maturidade e reprodução, ele deve ser capaz de se nutrir e caminhar adequadamente pelo seu ambiente. A percepção serve a estes propósitos.


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Cada uma dessas exigências exigem apropriação. A plausibilidade da teoria de Aristóteles gira em torno de suas eventuais explicações. A primeira exigência (i) destina-se a distinguir as capacidades ativas dos animais das capacidades meramente passivas dos corpos inanimados, incluindo os meios através das quais as formas sensíveis viajam. (Da mesma forma que não quer dizer que o tofu na geladeira percebe o alho ao lado, não quero dizer que o ar percebe a cor azul quando afetado pela cor de um carro). Mas ainda não específica o que é necessário para ter as capacidades ativas necessárias. Outra dificuldade é a noção de isomorfismo utilizada em (iii). Como foi dito, (iii) exige uma análise mais aprofundada. As interpretações variam desde tratar a forma do isomorfismo de modo direto e literal, de um jeito que, por exemplo, os olhos tornam-se manchados diante de um ovo azul; a atenuada, onde o isomorfismo é mais semelhante àquilo que se aprecia entre uma casa e sua tinta azul. Neste ponto em especial é onde a plausibilidade da análise hilemórfica da percepção é mais questionável.
Cada uma dessas exigências exigem apropriação. A plausibilidade da teoria de Aristóteles gira em torno de suas eventuais explicações. A primeira exigência (i) destina-se a distinguir as capacidades ativas dos animais das capacidades meramente passivas dos corpos inanimados, incluindo os meios através das quais as formas sensíveis viajam. (Da mesma forma que não quer dizer que o tofu na geladeira percebe o alho ao lado, não quero dizer que o ar percebe a cor azul quando afetado pela cor de um carro). Mas ainda não específica o que é necessário para ter as capacidades ativas necessárias. Outra dificuldade é a noção de isomorfismo utilizada em (iii). Como foi dito, (iii) exige uma análise mais aprofundada. As interpretações variam desde tratar a forma do isomorfismo de modo direto e literal, de um jeito que, por exemplo, os olhos tornam-se manchados diante de um ovo azul; a atenuada, onde o isomorfismo é mais semelhante àquilo que se aprecia entre uma casa e sua tinta azul. Neste ponto em especial é onde a plausibilidade da análise hilemórfica da percepção é mais questionável.
= Mente =
=Mente=
Aristóteles descreve mente (''nous'', muitas vezes também traduzido e entendido como "intelecto" ou "razão") como "a parte da alma pelo qual ela sabe e entende" (''De Anima'' iii 4, 429a9-10; cf. iii 3, 428a5; iii 9, 432b26; iii 12, 434b3), caracterizando-a em termos amplamente funcionais. É claro que os seres humanos podem conhecer e entender as coisas; de fato, Aristóteles supõe que é da nossa própria natureza o desejo de conhecer e compreender (''Meta''. i 1, 980a21; ''De Anima'' ii 3, 414b18; iii 3, 429a6-8). Deste modo, tal como a posse das faculdades sensoriais é essencial para um animal, da mesma forma a posse de uma mente é essencial para o ser humano. No entanto mentes humanas fazem mais do que apenas entender. É igualmente essencial para o ser humano a capacidade de planejar e escolher, ponderar alternativas e estratégias, estabelecer cursos de ação. Aristóteles atribui essas atividades de compreensão e contemplação à mente e, consequentemente, distingue o "espírito prático" (ou "inteligência prática" ou "razão prática") de "mente teórica" (ou "inteligência teórica" ou "razão teórica") (''Nicomachean Ethics'' vi 8 1143a35-b5). Portanto, em todas estas formas, ao investigar essa capacidade de alma, encontra-se um significado especial para Aristóteles: na investigação mente, ele está investigando o que torna os seres humanos, humanos.
Aristóteles descreve mente (''nous'', muitas vezes também traduzido e entendido como "intelecto" ou "razão") como "a parte da alma pelo qual ela sabe e entende" (''De Anima'' iii 4, 429a9-10; cf. iii 3, 428a5; iii 9, 432b26; iii 12, 434b3), caracterizando-a em termos amplamente funcionais. É claro que os seres humanos podem conhecer e entender as coisas; de fato, Aristóteles supõe que é da nossa própria natureza o desejo de conhecer e compreender (''Meta''. i 1, 980a21; ''De Anima'' ii 3, 414b18; iii 3, 429a6-8). Deste modo, tal como a posse das faculdades sensoriais é essencial para um animal, da mesma forma a posse de uma mente é essencial para o ser humano. No entanto mentes humanas fazem mais do que apenas entender. É igualmente essencial para o ser humano a capacidade de planejar e escolher, ponderar alternativas e estratégias, estabelecer cursos de ação. Aristóteles atribui essas atividades de compreensão e contemplação à mente e, consequentemente, distingue o "espírito prático" (ou "inteligência prática" ou "razão prática") de "mente teórica" (ou "inteligência teórica" ou "razão teórica") (''Nicomachean Ethics'' vi 8 1143a35-b5). Portanto, em todas estas formas, ao investigar essa capacidade de alma, encontra-se um significado especial para Aristóteles: na investigação mente, ele está investigando o que torna os seres humanos, humanos.