O caso dos irmãos Reimer foi um grupo de procedimentos médicos e psicológicos desenvolvidos para converter Bruce Reimer, uma criança nascida com pênis em 1965, no Canadá, em Brenda, uma menina com uma vagina criada por procedimento cirúrgico. O caso foi acompanhado pelo célebre psicólogo neozelandês John Money, que sugeriu os procedimentos médicos e ofereceu acompanhamento psicológico. A história foi divulgada pelo próprio Money sob o título “John/Joan” como um caso bem-sucedido, o que inspirou a criação de um protocolo para situações similares. Contudo, Bruce, que havia sido rebatizado como Brenda como etapa para a sua redesignação de gênero, não aceitou ser identificada como do gênero feminino e, aos 13 anos, expressou seu desejo de ser reconhecido como um menino, quando a história foi-lhe revelada, assumindo, na ocasião, o nome David. A partir deste momento, David e sua família iniciaram os procedimentos para assumir a identidade de gênero masculina, estado em que permaneceu a vida toda até seu suicídio, em 2004. O caso é bastante polêmico e muito debatido entre psicólogos, sexólogos e outros profissionais. Money, por conta do caso, é acusado de postura anti-ética por muitos pesquisadores.

História

Acidente

Em 22 de Agosto de 1965, na cidade de Winnipeg, no Canadá, nasceram os gêmeos Bruce e Brian Reimer. Com sete meses de idade, os irmãos foram diagnosticados com fimose e encaminhados a um especialista para que passassem por uma cirurgia de circuncisão. Enquanto Bruce era operado, o aparelho utilizado pelos médicos apresentou uma falha elétrica que fez com que seu pênis fosse completamente queimado. Na época do acidente, as cirurgias plásticas não eram avançadas o suficiente para reconstruir esse órgão, o que deixou a família preocupada em relação à identidade de gênero da criança e as dificuldades que enfrentaria em uma futura vida sexual.

Contato da família com John Money

Meses após a circuncisão malsucedida de Bruce Reimer, Janet e Ronald Reimer, os pais de Bruce e Brian, assistiram na televisão uma entrevista com o psicólogo John Money, um pioneiro em estudos sobre gênero. Nessa entrevista, foi dito que o Hospital John Hopkins, em Baltimore, estava abrindo uma clínica de identidade de gênero, focada em pessoas que queriam mudar de sexo. Além disso, Money falou sobre suas perspectivas em relação ao assunto e apresentou ao público uma mulher transgênero que havia sido sua paciente. Essa narrativa trouxe esperança à família Reimer, que prontamente escreveu para o psicólogo.

John Money respondeu a Janet e Ronald e, posteriormente, se encontrou com o casal no hospital John Hopkins. Nesse encontro, Money os disse que, nas condições em que se encontrava, Bruce teria uma vida solitária e se entenderia como um alguém incompleto e fisicamente defeituoso. Money argumentou que, para que essas questões não se tornassem realidade, Bruce poderia passar por uma cirurgia de redesignação sexual, ou seja, remover cirurgicamente o que havia sobrado do pênis de Bruce e criar uma vagina primitiva em seu lugar. O psicólogo explicou que reconstruir o pênis de Bruce não era possível, mas que uma vagina perfeitamente funcional poderia ser criada. Ele ainda assegurou que o fato de Bruce ter nascido homem era irrelevante porque, de acordo com sua Teoria da Neutralidade de Gênero, o gênero de um indivíduo era neutro durante seus primeiros anos de vida e o que o diferenciaria como masculino ou feminino seriam as experiências vivenciadas ao longo do crescimento. Assim, a partir daquele momento, as experiências de Bruce passariam a ser intermediadas por seus pais, para que ele acreditasse que sempre foi uma menina.

A cirurgia

Seguindo as orientações de John Money, em 3 de julho de 1967, com quase dois anos, Bruce Reimer foi levado até o Hospital John Hopkins, nos EUA, para passar por uma cirurgia de orquidectomia bilateral e construção de uma vagina. No procedimento, seus testículos foram removidos e seu órgão genital substituído por uma vagina rudimentar.

Bruce, então, passou a se chamar Brenda e a ser vestido e tratado como uma menina. Ele começou a tomar estrogênio no fim da infância, visando desenvolver traços femininos no período da puberdade. O psicólogo também explicou que se a verdade fosse revelada a Brenda, a mudança de sexo seria um fracasso. O psicólogo passou a fazer consultas regulares com os gêmeos, para acompanhar esse processo de transição.

Consequências

O comportamento de Brenda não se mostrou como o esperado e, conforme ela foi crescendo, a situação foi se tornando cada vez pior. Diante dos efeitos do estrogênio, traços femininos, como o crescimento do busto, se desenvolveram no corpo de Brenda. Com isso, contudo, a menina passou a se sentir deformada. Ela tentava rasgar as roupas femininas em que era vestida e era incentivada a brincar com coisas geralmente relacionadas a meninas, como bonecas, mas sempre se interessava mais pelos brinquedos de seu irmão. Ela não era aceita pelas meninas, que a consideravam muito masculina, e também não era aceita pelos meninos, que não queriam uma menina entre eles. Brenda não se sentia feliz e demonstrava ter impulsos suicidas, além de ter desenvolvido uma relação conflituosa com seu irmão.

Temendo o possível fracasso de seu experimento, John Money resolveu ser mais incisivo durante as consultas de acompanhamento, buscando fazer com que Brenda enfim aceitasse sua identidade feminina. De início, o psicólogo focou em mostrar as diferenças entre as genitálias masculina e feminina. Ele começou fazendo uma série de perguntas íntimas sobre as características das genitais e também mostrou para Brenda um livro chamado “Dois Nascimentos”, com imagens explícitas de mulheres dando à luz.

Sem sucesso, Money tentou convencê-la a fazer uma cirurgia de reconstrução de vagina, argumentando que, dessa forma, sua genitália se pareceria mais com a de outras meninas. Dizia que, dessa forma, ela seria “consertada” e se sentiria melhor, mais feminina. Brenda, sem intenções reais de fazer esse procedimento, disse a ele que ainda não estava pronta.

Percebendo que ainda estava longe de atingir seu objetivo, John Money teria tomado uma decisão drástica. Os gêmeos relatam que, durante os dois últimos anos do tratamento, foram obrigados a se despirem, frente a frente, para que Brenda pudesse observar e comparar as suas genitais com as do irmão. Money também teria obrigado-os a fazer diferentes posições sexuais, evidenciando o papel de cada um numa relação, e tirado fotografias dos dois. No entanto, embora as práticas citadas anteriormente tenham sido comprovadas através das transcrições das consultas, não é possível confirmar as alegações referentes às fotografias e à nudez, uma vez que os arquivos referentes a esse período estão inacessíveis à consulta pública.

Em 1978, quando Brenda estava perto de completar 13 anos, Money tentou mais uma vez convencê-la a fazer a cirurgia de reconstrução vaginal. Para isso, convidou uma mulher transgênero para participar da sessão, acreditando que, ao conhecer uma adulta que se submeteu a essa cirurgia e que se sentia feliz sendo mulher, Brenda mudaria de ideia. A consulta, no entanto, a deixou tão incomodada que ela ameaçou cometer suicídio caso precisasse ver John Money novamente. Por conta disso, a partir daquele momento, os gêmeos se desvincularam de Money e passaram a ser atendidos por um profissional local, o Dr. McKenty.

Revelação

Com 13 anos, Brenda estava depressiva, já havia tentado suicídio e ameaçava tentá-lo novamente. Seus pais, então, associaram esse comportamento ao fracasso da redesignação sexual e, com o incentivo do médico que a estava acompanhando na época, decidiram que era o momento de contar a verdade.

Na tarde do dia 14 de março de 1980, Ronald foi buscar sua filha em uma de suas sessões de terapia, mas, ao invés de levá-la até em casa, como de costume, dirigiu até uma loja de sorvetes, local em que sempre levava seus filhos quando precisava contar alguma notícia ruim. Brenda ficou preocupada, começou a fazer perguntas e, após ter todos os seus questionamentos negados pelo pai, foi explicada quanto ao verdadeiro motivo de estarem ali. Naquele momento, Ronald revelou, em detalhes, o passo a passo de tudo o que havia acontecido com ela, que o respondeu com uma única pergunta, “Qual era o meu nome?”, e decidiu imediatamente que queria reverter o seu gênero e se tornar, biologicamente, um menino.

Enquanto isso acontecia, na casa da família, Janet contava tudo para Brian, que se mostrou transtornado com a situação e reagiu de maneira agressiva. Posteriormente, sua mãe relatou acreditar que essa reação se deu porque Brian não conseguiu aceitar que Brenda era, na verdade, seu irmão e que ele não era o único menino.

David após a revelação do experimento

Pelo fato de ter sido criada e apresentada como uma menina por tantos anos, Brenda e seus pais se preocuparam com os possíveis preconceitos e estranhamentos que sofreriam quando a redesignação de sexo ocorresse. Pensaram em várias formas de tornar esse momento mais fácil, como mudar de cidade por um tempo ou apresentá-lo como um primo distante, mas esperar por uma solução só deixou Brenda mais ansiosa para sua transição. Assim, durante a adolescência, pediu para ser chamada pelo nome de David e, diferentemente do que esperavam, essa mudança foi muito bem recebida por seus amigos e familiares, que perceberam que a melancolia que fazia parte do comportamento de Brenda foi substituída por alegria, no comportamento de David.

David passou a receber injeções de testosterona e fez uma mastectomia dupla e, em 2 de julho de 1981, fez uma cirurgia para criar um pênis rudimentar e implantar testículos. Durante o primeiro ano pós-cirurgia, David foi hospitalizado 18 vezes por bloqueios e infecções em sua uretra artificial e, durante os três anos seguintes, continuou sendo hospitalizado regularmente.

Ele foi apresentado para os amigos de Brian como um primo perdido e, para explicar o desaparecimento de Brenda, os gêmeos inventaram a história de que ela teria ido morar com um namorado, mas morrido em um acidente de avião. Quanto às hospitalizações frequentes de David, diziam que eram resultados de complicações de um acidente de moto.

Nos anos seguintes, David passou a se sentir muito angustiado em relação a sua vida amorosa. Com medo de ter seu segredo revelado, desenvolveu uma estratégia para evitar que seus encontros românticos se tornassem íntimos: ele ingeria uma quantidade alta de bebida alcoólica e, quando se via em risco, dizia que estava cansado e que iria desmaiar.

Certa vez, David se descuidou e acabou dormindo junto a uma namorada e, enquanto ele dormia, ela olhou sua região íntima. No dia seguinte, a namorada o questionou sobre o que havia visto e recebeu a resposta de que ele havia sofrido um acidente. Em poucos dias, a notícia se espalhou e David começou a escutar tantos comentários e piadas a respeito de si que tentou cometer suicídio: ele ingeriu todos os comprimidos de um frasco de antidepressivos que pertencia à sua mãe e se deitou. Alguns momentos depois, David foi encontrado inconsciente por seus pais que, em um primeiro momento, se questionaram se realmente deveriam salvá-lo, porque o filho já havia sofrido demais.

No verão de 1987, Brian apresentou David a uma mulher chamada Jane Fontane, uma mãe solteira de três filhos. Os dois tornaram-se um casal rapidamente e, em 22 de setembro de 1990, David e Jane se casaram.

Toda a trajetória de David teve forte impacto, também, no ajustamento psicossocial de seus pais. Enquanto a verdade ainda não havia sido revelada, ambos entraram em estados depressivos, seu pai se tornou um abusador de álcool e sua mãe tentou suicídio. Com a revelação do caso e o início da história de David, a vida dos envolvidos foi se tornando cada vez melhor e menos dolorosa. Brian, no entanto, aparece como uma exceção dessa narrativa, porque nunca se recuperou por completo do choque da revelação e, ao longo dos anos, desenvolveu traços antissociais.

Durante a vida adulta, David descobriu que John Money continuava compartilhando o seu caso como se tivesse sido bem-sucedido, utilizando o pseudônimo “John/Joan” para referir-se à história e usando-a como uma prova de que suas teorias estavam certas. David, então, receoso que outras pessoas pudessem passar pelo que ele passou, convenceu Brian de que deveriam ir a público para que contassem suas histórias e, mediante uma publicação do sexologista Milton Diamond, teve sua verdadeira história revelada, o que gerou uma série de artigos, livros e personagens inspirados no caso e colocou John Money no centro de uma polêmica.

Final da vida dos irmãos Reimer

O relacionamento entre David e Brian não era bom. Brian não reagiu bem à revelação de que Brenda havia nascido um menino e, durante a adolescência, foi diagnosticado com esquizofrenia. Após vir a público expor o psicólogo John Money, a saúde mental de Brian, que já não era estável, foi se deteriorando ainda mais e, em 2002, ele faleceu, devido a uma overdose de antidepressivos.

A morte de Brian foi muito impactante para David, que já sofria de depressão e passava por problemas financeiros e conjugais na época. Assim, no dia 4 de maio de 2004, David Reimer, com 38 anos, se suicidou com um tiro na cabeça.

Repercussões do caso

John Money

A Teoria da Neutralidade de Gênero, idealizada por John Money, foi desenvolvida através de estudos com pessoas intersexo e/ou que passaram por cirurgias de redesignação sexual e considera o gênero como algo essencialmente neutro. Nesses estudos, Money tinha contato frequente com cirurgias de redesignação sexual, as quais afirmava que costumavam ser bem sucedidas e o fizeram acreditar na ideia de que a plasticidade do gênero não era exclusiva desse grupo, mas se aplicava a todos. Com essa perspectiva, ao conhecer a família Reimer, o psicólogo encontrou uma oportunidade de provar o que defendia. Mesmo que não houvesse estudos sobre esse procedimento em pessoas que não pertenciam ao grupo intersexo, Money deu início a um experimento de redesignação sexual em David Reimer, na época, com 22 meses de vida.

Embora se mostrassem evidentes as dificuldades enfrentadas por Brenda e a negação dela por um estilo de vida colocado como feminino, o psicólogo se recusou a tratar o caso como falho. John Money publicou o caso sem mencionar quaisquer aspectos negativos, com o pseudônimo de “John/Joan”, e construiu parte de sua carreira e reputação em cima dessa história, que foi apresentada como um grande sucesso. Mesmo sabendo que o experimento não havia ido ao encontro de sua teoria, através da repercussão positiva do caso, o psicólogo se tornou cada vez mais influente e utilizou dessa narrativa para se promover no meio científico.

Com o amplo reconhecimento da comunidade médica por seu trabalho e suas contribuições para o estudo do gênero, foi criado o “Protocolo Money”, que serviu como um guia para o tratamento de crianças intersexo, tendo como base as inverdades propagadas por ele como ciência e sendo mantido, sem questionamentos, até a revelação do caso real pelos Reimer.

Com a revelação dos reais acontecimentos por parte dos irmãos Reimer e a enorme repercussão do caso, em 2002, John Money mencionou o assunto em parte de seu livro “A first person history of pediatric psychoendocrinology” [Uma história em primeira pessoa da psicoendocrinologia pediátrica, tradução livre]. Em seu pronunciamento, disse que a confidencialidade médica o impedia de expor o caso, mesmo para sua autodefesa porque, se o fizesse, estaria violando os direitos de privacidade dos pacientes. Afirmou ainda que seu trabalho era fazer o máximo possível para ajudar pessoas em crise e que a narrativa apresentada pelos Reimer serviu apenas para manchar a reputação da sexologia e da ciência.

Respostas à Money

Grande parte das pessoas que comentam sobre o caso argumentam que Money publicou apenas as partes boas do experimento para que sua teoria parecesse verdadeira, ignorando seu real fracasso e propagando ideias errôneas como se fossem fatos. Em contrapartida, familiares, amigos próximos e outros profissionais que trabalharam diretamente com o psicólogo o defendem, afirmando que suas intenções ao compartilhar o experimento eram positivas e buscavam ajudar pessoas em situações difíceis e que só coisas boas constavam em sua publicação porque, até o momento dela, só coisas boas teriam acontecido. As datas, no entanto, comprovam que ele já sabia do fracasso de seu experimento antes de publicá-lo, em 1970.

Dentre as críticas recebidas pelo psicólogo, a principal constatação é a de que o caso Reimer foi utilizado para perpetuar uma falsa ciência. Em contrapartida, muitos pesquisadores afirmam que, na atualidade, os danos causados por John Money podem ser utilizados como fonte de aprendizado para jovens estudantes e para a educação dos responsáveis por crianças intersexo. Ademais, o estudo do caso Reimer, além de servir como recurso de pesquisa na área de sexo e gênero, se mostra relevante como um apoio para a formação dos conceitos éticos de todos os profissionais de saúde mental.

John Colapinto

O jornalista John Colapinto é autor de As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl, um livro baseado na história da família Reimer, cheio de críticas a John Money. Colapinto descredibiliza a teoria do psicólogo, afirmando que o gênero é algo essencialmente natural, biológico e que não pode ser socialmente construído, porque a natureza sempre prevalece na formação da identidade de gênero. A partir disso, discorre sobre como Money ter tratado David Reimer como uma menina trouxe prejuízos irreparáveis na vida dele e de toda a sua família.

Colapinto foi um dos principais críticos de John Money. Dentre suas alegações, acusava o psicólogo de ter escondido evidências de que o experimento era falho como forma de se promover, traumatizar os gêmeos Reimer durante as entrevistas e ter tido um comportamento inaceitável como cientista e clínico.

Thomas J. Gerschick

Ao analisar o livro de Colapinto sobre o caso Reimer, Thomas Gerschick levanta indagações sobre a validade das afirmações que foram apresentadas para refutar a teoria de Money. Enquanto o autor baseia seu argumento na ideia de que o experimento falhou devido à determinação natural do gênero, Gerschick destaca que elementos interativos não foram devidamente contemplados nessa análise. Ele argumenta que fatores sociais também podem ter desempenhado um papel significativo na formação da identidade de gênero de Reimer. Gerschick observa, por exemplo, que nunca foi abordada a questão de como as pessoas que conheciam David quando criança o percebiam em termos de masculinidade, ou se a rejeição ao feminino decorria de uma imagem desvalorizada desse grupo.

Dessa forma, Gerschick não se posiciona como um apoiador incondicional de John Money, mas sim como um crítico da perspectiva de Colapinto, argumentando que esta não leva em consideração os elementos sociais que poderiam ter influenciado a construção da identidade de gênero.

Milton Diamond

Milton Diamond é um pesquisador e especialista em sexualidade humana que estudou a história de David Reimer, tendo sido o responsável por publicar a versão dos gêmeos sobre o ocorrido. De acordo com sua teoria, os hormônios pré-natais influenciam fortemente o cérebro e o comportamento, e são os reais responsáveis pelo controle de uma identidade de gênero, indo totalmente contra o que era pregado por John Money. Ao comentar o caso, Diamond lamenta que tantas criações, teóricas e filosóficas, tenham sido estruturadas a partir de supostos resultados de um caso singular e não confirmado.

Wendy McKenna e Suzanne J. Kessler

McKenna e Kessler lançam uma crítica fundamentada em Money, Diamond e vários outros acadêmicos, autores e pesquisadores, apontando o foco excessivo nesse caso específico e a sua utilização como a única base para inúmeras discussões acadêmicas sobre gênero. Elas argumentam que considerar automaticamente o sexo e o gênero como uma dicotomia é um erro significativo que persiste em ser perpetuado.

As autoras explicam que termos relacionados ao gênero, como orientação sexual, gênero em si e cérebro masculinizado, são componentes essenciais das características humanas. Contudo, simultaneamente, esses termos contribuem para a formação de papéis de gênero rigidamente definidos. Nesse sentido, elas afirmam que o gênero não é determinado nem pela natureza nem pela criação, mas sim que cada indivíduo cria e desenvolve de maneira única a autenticidade de seu sexo e gênero.

Além disso, McKenna e Kessler defendem a posição de Money, argumentando que se os papéis de gênero não fossem tão inflexíveis, talvez não houvesse a necessidade de Brenda se transformar em David. Essa perspectiva destaca a importância de repensar e flexibilizar as normas de gênero para permitir uma expressão mais autêntica e individualizada do sexo e do gênero.

Leonore Tiefer

Tiefer acredita que o grande problema do caso Reimer não foi o fato de Bruce ter sido criado como uma menina e sim a realidade de ter crescido em um mundo que só permitia duas possibilidades de gênero, fazendo com que seus pais fossem forçados a enquadrá-lo em uma narrativa que acreditavam ser a ideal. Ademais, cita feministas e outros grupos que negam um sistema dividido por fatores biológicos como os verdadeiros vilões da história, por não lutarem contra uma perspectiva de mundo baseada em dois gêneros que, para Tiefer, é uma realidade cruel.

Richard C. Friedman

Richard Friedman defende John Money através de uma perspectiva histórica. Ele afirma que, na época em que o caso Reimer ocorreu, a noção de que a criação poderia ser mais relevante que a natureza era algo totalmente crível. Diz que, naquele período, era comum que medidas terapêuticas heróicas fossem aplicadas e que muitos médicos acreditavam que permanecer como um menino traria uma vida de angústia a Reimer, assim, embora a mudança de gênero parecesse desafiadora, era a única alternativa que fornecia esperança à família. Dessa maneira, Friedman defende que a decisão de Money em realizar essa intervenção, considerando os fatores culturais da época, foi totalmente razoável e compreensível.

John Sloop

John Sloop argumenta que uma análise crítica do discurso médico e midiático em torno do caso revela o uso comum de signos de gênero (como roupas, cabelo, gestos e orientação sexual) por ambas as partes para respaldar suas concepções de gênero como construído ou biologicamente determinado. Ele propõe, então, a aplicação da teoria da performatividade de Judith Butler para questionar as categorias naturalizadas de gênero que sustentam a hegemonia masculina e o poder heterossexual. Além disso, busca explorar as oportunidades de performances de gênero diversas que foram "forçosamente fechadas" pelo desenrolar do caso.

Sloop também destaca a discussão dos efeitos associados à ideia de que o gênero é determinado pelo cérebro, argumentando que tal perspectiva implica na moralização dos comportamentos de gênero e na desvalorização do feminismo e dos estudos de gênero.

Variáveis analisadas

As variáveis analisadas pelo experimento são o gênero e a identidade sexual. Money defende, portanto, que o gênero tem uma influência puramente biológica e totalmente substituível por experiências pós-nascimento, e que a identidade sexual, por sua vez, se dá a partir do ambiente e das aprendizagens.

Nesse sentido, ao modificar o gênero de Bruce para fazê-lo se identificar como uma menina, o psicólogo pretende confirmar a hipótese de que o gênero é uma característica secundária e irrelevante para a formação de uma identidade sexual que se constituiria, na verdade, das experiências vivenciadas ao longo do crescimento.

Teoria

O experimento de redesignação sexual de David Reimer foi baseado na Teoria da Neutralidade de Gênero, de John Money, desenvolvida através de estudos com pessoas intersexo. Essa teoria tinha como princípio a ideia de que o gênero de um indivíduo é essencialmente neutro e que sua formação se dá nos primeiros dois anos de vida, através das experiências, devido à plasticidade do gênero. Money acreditava, então, que qualquer menino poderia ser criado como uma menina e vice-versa, sem que isso causasse efeitos danosos aos envolvidos. Essa hipótese, no entanto, não tinha comprovação científica e precisava de um experimento para que fosse provada e utilizada no tratamento de pessoas intersexo. Assim, para John Money, o caso de Bruce e Brian Reimer parecia perfeito para essa tarefa.

Hipóteses e resultados

A hipótese de John Money era de que qualquer pessoa nascida como menino poderia ser criado como uma menina e vice-versa, sem que isso causasse efeitos danosos aos envolvidos, porque o que determina o gênero de um indivíduo é a criação que ele recebe e não sua natureza.

O resultado do experimento não se mostrou favorável a essa hipótese, visto que Bruce, nascido menino, nunca se sentiu confortável sendo criado como uma menina e disse só ter atingido a felicidade quando voltou a ser anatomicamente masculino, mesmo que seus pais e psicólogo tenham trabalhado essa narrativa em sua mente durante mais de 10 anos.

Retratos do caso na mídia

  • O episódio “Boys Will Be Girls” de Chicago Hope foi inspirado na vida de David Reimer (2000);
  • David e sua mãe participaram de um episódio do The Oprah Winfrey Show (2000);
  • O livro As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl conta a história por trás do caso Reimer (2000);
  • O documentário Dr. Money and the Boy With No Penis ilustra a história defendida pela família (2004);
  • O episódio “Identidade” de Law & Order: SVU é inspirado no caso e nas alegações contra John Money (2005);
  • A música Hymn of the Medical Oddity, da banda canadense The Weakerthans, é sobre David Reimer 2010);
  • A peça Boy foi inspirada na vida dos Reimer (2016);
  • O filme Born to be Human conta uma história semelhante à de David (2021).

Personagens importantes

John Money

John Money nasceu em 8 de Julho de 1921 em Morrinsville, Nova Zelândia e emigrou para os Estados Unidos em 1947, concluindo seu PhD na Universidade de Harvard, em 1952. Money focou seus estudos em pessoas intersexo e foi o primeiro teórico a se referir ao gênero, o diferenciando entre o sexo anatômico do que ele acreditava ser o sexo psicológico. A partir desse princípio, o psicólogo desenvolveu a Teoria da Neutralidade de Gênero, que considerava o gênero como algo relacionado à criação e não à natureza. Para provar essa teoria, em 1967, Money arquitetou um experimento de redesignação sexual com os irmãos David e Brian Reimer, mas os resultados não foram favoráveis às suas ideias.

Bruce/Brenda/David Reimer

David Reimer nasceu em 22 de Agosto de 1965, na cidade de Winnipeg, no Canadá, filho de Janet e Ronald Reimer. Após uma cirurgia de circuncisão malsucedida para curar uma fimose quando tinha apenas sete meses de idade, Reimer teve seu pênis irremediavelmente prejudicado. Essa circunstância o levou a se tornar parte principal de um experimento de redesignação sexual conduzido pelo psicólogo neozelandês John Money. Bruce, que assumiu o nome Brenda, passou então a ser tratado como uma menina, sob supervisão de Money. Após a revelação de sua história por parte de seu pai, pediu para ser chamado de David e assumiu uma identidade masculina.

Brian Reimer

Brian Reimer nasceu em 22 de Agosto de 1965, na cidade de Winnipeg, no Canadá. Junto de seu irmão gêmeo, aos sete meses de idade, tornou-se parte de um experimento de redesignação sexual. Enquanto Bruce, seu irmão, passou a ser tratado como uma menina, Brian permaneceu como o gêmeo masculino, sendo observado para comparações de comportamento. Ele acabou se tornando o caso controle.

Referências

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Autoria

Verbete criado por Julia Lombardi Carneiro, revisado por André Elias Morelli Ribeiro. Criado em 2023.2, publicado em 2023.2.